quarta-feira, 13 de setembro de 2017


FABULÁRIO 1


A INVENÇÃO DA LIRA

Carlos Rodarte Veloso

(Texto publicado no Catálogo “Reflexos – 40 jóias/40 contos” de Maria Duarte, mostra de 1-9 a 1-10-2017, Casa do Pelourinho, Óbidos e no "Correio Transmontano", 13 - 9 - 2017)

No tempo em que laboriosos anões mineravam metais e pedras preciosas nas grutas profundas do centro da Terra, o Universo era dominado por uma raça de seres fabulosos, todos diferentes entre si, mas com poderes sobrenaturais.
Eles dividiam entre si as forças da Natureza e eram chamados deuses. Os anões serviam-nos com o seu engenho, não só escavando na rocha bruta o finíssimo minério do ouro e da prata, como transformando-o em delicados objectos de adorno ou armas  poderosas.
Pela sua abundância, a prata era a menos valorizada e reflectia na noite a sua pálida luz, que se confundia com a cor de Selene, a Lua, domínio da deusa archeira Artemisa, Senhora de todos os animais, virgem cavalgando o espaço na sua barca alada, o Crescente Lunar.
Durante a sua cavalgada nocturna dominava a Terra, enquanto o todo poderoso Hélio, o Sol, domínio do incomparável Apolo, seu irmão, descansava antes de fazer a sua aparição triunfal e tudo incendiar com os seus raios.
O Senhor do Raio e das Tempestades, Zeus, exigia a ambos, assim como a todos os deuses, um tributo de vassalagem que fizesse jus à sua submissão perante o seu poder.
Era fácil a Apolo afastar toda a concorrência com as magníficas jóias fundidas, da cor do Sol, que encandeavam quem as olhasse mesmo por breves instantes. Os anões serviam-no mas a arrogância de Apolo nunca se satisfazia com os produtos do engenho deste povo de mineradores.
Para os castigar pelo que chamava a sua incompetência, precipitava-os do seu carro alado nas crateras dos vulcões ou torturava-os nas labaredas que produzia. Mesmo assim, o seu descontentamento era injusto porque o seu tributo ultrapassava sempre em muito o dos outros deuses, o que fazia dele o lugar-tenente de Zeus.
Os anões, fartos da arrogância e da crueldade de Apolo decidiram então procurar, longe das vistas do tirano, a deusa da Noite, oferecendo-se para a propiciar com uma oferenda capaz de satisfazer o Todo Poderoso Zeus e torná-la, assim, a mais influente divindade junto do poder olímpico.
Fundiram então um veio de prata de uma brancura incomparável e tão sensível como um ser vivo, capaz de responder às mais ténues vibrações que o percutissem com os sons mais sublimes até então ouvidos.
Com esse material admirável, sensível também ao fluxo das marés e ao pulsar dos corações, fabricaram um intrincado instrumento musical, parente próximo do arco de Artemisa, cujas finíssimas cordas eram esticadas ao ponto de a menor vibração contagiar todos os seres vivos e a própria Natureza, imediatamente animados com a própria essência da Vida.
Esse instrumento tinha o seu reflexo na abóbada celeste, na constelação dita da Lira. Se foi o instrumento que deu o nome à constelação, ou esta ao instrumento, não o sabemos já, mas a verdade é que Artemisa apresentou-o a Zeus como seu tributo, e imediatamente a abóbada celeste se incendiou com uma cascata prateada, estrada para todo o Universo, a que se chama agora a Via Láctea, ao mesmo tempo que fantásticas Auroras Boreais faziam dançar cortinas de luz no vasto Céu.
Ao mesmo tempo, as esferas de cristal dos diversos astros ganharam voz e passaram a produzir, ininterruptamente, a Música das Esferas, sonoridades eternas que o nosso ouvido de tão habituado, já não consegue escutar.
Tudo isso foi apresentado a Zeus, cujo contentamento foi inexcedível, aceitando assim a deusa da Noite no alto palácio que habitava como sua igual. E como símbolo de aliança, transformou a argêntea lira no seu símbolo favorito, assim como da Harmonia do Mundo.
Mas Apolo não se resignou e contaminou a Terra com a primeira grande Peste, que aniquilava os seres humanos, assim impedidos de ofertar sacrifícios aos deuses, a principal utilidade da Humanidade segundo o ponto de vista divino.
Zeus reuniu o Conselho dos Deuses e invocou a catástrofe que assim se abatia sobre o Olimpo, pedindo uma solução que congraçasse  Apolo com Artemisa.
Foi Hermes, o deus mensageiro, hábil manipulador, que encontrou a solução: sendo a Lira um instrumento de tal valor, Zeus deveria cedê-lo a Apolo, que assim juntaria ao seu poder maléfico, capaz de produzir a Peste, o poder benéfico da Música e da Harmonia, a Justa Medida.
Como reconhecimento destes benefícios, entregou a Apolo a alta montanha do Parnasso, onde ele passou a ser acompanhado pelas nove Musas de todas as Artes, dando-lhe ainda poderes divinatórios através da Pitonisa, a sacerdotiza e guardiã do seu santuário em Delfos, no umbigo do Mundo.
Aqui nasceu uma fonte de águas límpidas que transmite poderes proféticos e passou a ser o local de culto onde os humanos procuravam conselho para os seus problemas mais sérios.
E os dois irmãos, por fim apaziguados, guardaram para sempre o seu domínio sobre o Dia e a Noite, respectivamente, enquanto do pescoço de Apolo pendia a lira de prata que, com a sua música divina, traz a harmonia ao mundo e ao coração dos humanos.

E os anões? Por lá continuam eles, pelas entranhas da Terra, produzindo os seus admiráveis tesouros que por lá vão ficando enterradas, até que uma erupção vulcânica, um géiser ou a requisição de um deus os traz à superfície, para de novo encantar quantos os contemplam.

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