FABULÁRIO 1
A INVENÇÃO DA LIRA
Carlos Rodarte Veloso
(Texto publicado no Catálogo “Reflexos
– 40 jóias/40 contos” de Maria Duarte, mostra de 1-9 a 1-10-2017, Casa
do Pelourinho, Óbidos e no "Correio Transmontano", 13 - 9 - 2017)
No tempo em que
laboriosos anões mineravam metais e pedras preciosas nas grutas profundas do
centro da Terra, o Universo era dominado por uma raça de seres fabulosos, todos
diferentes entre si, mas com poderes sobrenaturais.
Eles dividiam
entre si as forças da Natureza e eram chamados deuses. Os anões serviam-nos com
o seu engenho, não só escavando na rocha bruta o finíssimo minério do ouro e da
prata, como transformando-o em delicados objectos de adorno ou armas poderosas.
Pela sua
abundância, a prata era a menos valorizada e reflectia na noite a sua pálida
luz, que se confundia com a cor de Selene, a Lua, domínio da deusa archeira
Artemisa, Senhora de todos os animais, virgem cavalgando o espaço na sua barca
alada, o Crescente Lunar.
Durante a sua
cavalgada nocturna dominava a Terra, enquanto o todo poderoso Hélio, o Sol,
domínio do incomparável Apolo, seu irmão, descansava antes de fazer a sua
aparição triunfal e tudo incendiar com os seus raios.
O Senhor do Raio
e das Tempestades, Zeus, exigia a ambos, assim como a todos os deuses, um
tributo de vassalagem que fizesse jus à sua submissão perante o seu poder.
Era fácil a
Apolo afastar toda a concorrência com as magníficas jóias fundidas, da cor do
Sol, que encandeavam quem as olhasse mesmo por breves instantes. Os anões
serviam-no mas a arrogância de Apolo nunca se satisfazia com os produtos do
engenho deste povo de mineradores.
Para os castigar
pelo que chamava a sua incompetência, precipitava-os do seu carro alado nas
crateras dos vulcões ou torturava-os nas labaredas que produzia. Mesmo assim, o
seu descontentamento era injusto porque o seu tributo ultrapassava sempre em
muito o dos outros deuses, o que fazia dele o lugar-tenente de Zeus.
Os anões, fartos
da arrogância e da crueldade de Apolo decidiram então procurar, longe das
vistas do tirano, a deusa da Noite, oferecendo-se para a propiciar com uma
oferenda capaz de satisfazer o Todo Poderoso Zeus e torná-la, assim, a mais
influente divindade junto do poder olímpico.
Fundiram então
um veio de prata de uma brancura incomparável e tão sensível como um ser vivo,
capaz de responder às mais ténues vibrações que o percutissem com os sons mais sublimes
até então ouvidos.
Com esse
material admirável, sensível também ao fluxo das marés e ao pulsar dos
corações, fabricaram um intrincado instrumento musical, parente próximo do arco
de Artemisa, cujas finíssimas cordas eram esticadas ao ponto de a menor
vibração contagiar todos os seres vivos e a própria Natureza, imediatamente
animados com a própria essência da Vida.
Esse instrumento
tinha o seu reflexo na abóbada celeste, na constelação dita da Lira. Se foi o
instrumento que deu o nome à constelação, ou esta ao instrumento, não o sabemos
já, mas a verdade é que Artemisa apresentou-o a Zeus como seu tributo, e
imediatamente a abóbada celeste se incendiou com uma cascata prateada, estrada
para todo o Universo, a que se chama agora a Via Láctea, ao mesmo tempo que fantásticas
Auroras Boreais faziam dançar cortinas de luz no vasto Céu.
Ao mesmo tempo,
as esferas de cristal dos diversos astros ganharam voz e passaram a produzir,
ininterruptamente, a Música das Esferas, sonoridades eternas que o nosso ouvido
de tão habituado, já não consegue escutar.
Tudo isso foi
apresentado a Zeus, cujo contentamento foi inexcedível, aceitando assim a deusa
da Noite no alto palácio que habitava como sua igual. E como símbolo de
aliança, transformou a argêntea lira no seu símbolo favorito, assim como da
Harmonia do Mundo.
Mas Apolo não se
resignou e contaminou a Terra com a primeira grande Peste, que aniquilava os
seres humanos, assim impedidos de ofertar sacrifícios aos deuses, a principal
utilidade da Humanidade segundo o ponto de vista divino.
Zeus reuniu o
Conselho dos Deuses e invocou a catástrofe que assim se abatia sobre o Olimpo,
pedindo uma solução que congraçasse
Apolo com Artemisa.
Foi Hermes, o
deus mensageiro, hábil manipulador, que encontrou a solução: sendo a Lira um
instrumento de tal valor, Zeus deveria cedê-lo a Apolo, que assim juntaria ao
seu poder maléfico, capaz de produzir a Peste, o poder benéfico da Música e da
Harmonia, a Justa Medida.
Como
reconhecimento destes benefícios, entregou a Apolo a alta montanha do Parnasso,
onde ele passou a ser acompanhado pelas nove Musas de todas as Artes, dando-lhe
ainda poderes divinatórios através da Pitonisa, a sacerdotiza e guardiã do seu
santuário em Delfos, no umbigo do Mundo.
Aqui nasceu uma
fonte de águas límpidas que transmite poderes proféticos e passou a ser o local
de culto onde os humanos procuravam conselho para os seus problemas mais sérios.
E os dois
irmãos, por fim apaziguados, guardaram para sempre o seu domínio sobre o Dia e
a Noite, respectivamente, enquanto do pescoço de Apolo pendia a lira de prata
que, com a sua música divina, traz a harmonia ao mundo e ao coração dos
humanos.
E os anões? Por
lá continuam eles, pelas entranhas da Terra, produzindo os seus admiráveis tesouros
que por lá vão ficando enterradas, até que uma erupção vulcânica, um géiser ou
a requisição de um deus os traz à superfície, para de novo encantar quantos os
contemplam.
Sem comentários:
Enviar um comentário