FUNDAMENTALISMOS:
OS NOSSOS E OS DOS OUTROS
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 28 de Junho de 2018
Um livro editado em 2017, “A Chegada das Trevas: Como os Cristãos Destruiram o Mundo Clássico”, de Catherine Nixey, dá uma inesperada actualidade à obra clássica de Edward Gibbon “Declínio e Queda do Império Romano” editado entre 1776 e 78.
A obra de Gibbon constitui a primeira reacção significativa e devidamente fundamentada à ideia cristalizada desde o triunfo do Cristianismo como religião do Estado romano, de que este teria dado um contributo decisivo para a paz e a amizade entre os povos que tinham constituído o maior império até então existente.
Entre as causas da decadência e queda de Roma surgiram inúmeras hipóteses, a começar pelas morais – ou melhor, imorais... – numa História falseada pela ideologia clerical, alimentada a partir do século XIX por cenas de banquetes orgiásticos e outras “imoralidades” em romances pseudo-históricos de grande êxito popular, como “Os Últimos Dias de Pompeia”, “A Túnica”, “Quo Vadis”, “Ben-Hur”, “Fabíola”, depois passados ao cinema, com êxito sempre crescente. Esta “imoralidade”, advinda de costumes muito diversos do puritanismo cristão que considerava o sexo uma actividade altamente pecaminosa, merecedora do castigo divino, era alimentada pela propaganda da Igreja Católica, apostada em assim degradar à quase condição de animais ferozes os “pagãos”, “adoradores de ídolos” e, assim, do próprio Satanás...
Muitas outras causas foram avançadas pela miríade de investigadores que estudaram o tema, desde causas económicas a políticas, militares e, até médicas, as quais poderão dar, por acumulação, uma aproximação à realidade histórica.
No entanto, nunca ninguém se atrevera, como Gibbon, à “blasfémia” de acusar o Cristianismo triunfante de ser uma das causas da queda do Império, devido à substituição de uma elite militar activa pela indolência da classe sacerdotal católica, especialmente os monges. Segundo o nosso autor, “a Igreja e o próprio Estado foram dilacerados por facções religiosas, cujas querelas se revelaram geralmente sangrentas e sempre implacáveis ”.
Muitas outras causas foram avançadas pela miríade de investigadores que estudaram o tema, desde causas económicas a políticas, militares e, até médicas, as quais poderão dar, por acumulação, uma aproximação à realidade histórica.
No entanto, nunca ninguém se atrevera, como Gibbon, à “blasfémia” de acusar o Cristianismo triunfante de ser uma das causas da queda do Império, devido à substituição de uma elite militar activa pela indolência da classe sacerdotal católica, especialmente os monges. Segundo o nosso autor, “a Igreja e o próprio Estado foram dilacerados por facções religiosas, cujas querelas se revelaram geralmente sangrentas e sempre implacáveis ”.
Não adiantarei muito mais acerca da importância desta obra heterodoxa, por não ser este o espaço indicado. No entanto, a abordagem de Catherine Nixey afasta-se e vai muito mais longe do que a de Gibbon sobre as “causas” da decadência do mundo romano, modelo acabado de uma Europa unida pelo Mediterrâneo com o norte de África e um Próximo e Médio Oriente, tendencialmente a arquitectura geográfica alargada da União Europeia...
Para a autora de “Chegada das Trevas”, a Igreja católica primitiva não apenas conduziu a divisões insanáveis entre os povos do Império, como as acirrou com base no proselitismo com que atacou os próprios fundamentos culturais do mundo clássico.
A própria ideia largamente generalizada de terem sido os Cristãos martirizados aos milhares por todos os imperadores não corresponde inteiramente à verdade num mundo em que havia larguíssima tolerância religiosa englobando os próprios Cristãos. É claro que é bem real o episódio sangrento das perseguições de Nero, com base na sua procura de bodes expiatórios para o grande incêndio de Roma. No entanto, as perseguições documentadas até ao reinado de Constantino não são massivas, sendo antes casos excepcionais, pontuais mesmo, muitas vezes provocadas pelo próprio proselitismo de numerosos cristãos, desejosos de encontrar no martírio a glória de Deus.
Mas a partir do momento em que o Cristianismo se torna religião oficial do Estado, logo começam novas perseguições, desta vez sistemáticas, mas aos “pagãos” e à sua religião, assim como a todas as correntes filosóficas greco-latinas, do Epicurismo ao Estoicismo, com única excepção de alguns dos ensinamentos de Platão e Aristóteles, que posteriormente acabariam por ser adoptados parcialmente pelas doutrinas da Igreja.
É paradigmática a destruição da Biblioteca de Alexandria e o monstruoso assassínio, com inacreditável crueldade – esfolada em vida! – de uma mulher excepcional, filósofa e cientista, Hipátia, que não só não se submeteu às limitações a que a doutrina cristã sempre quis reduzir o seu sexo, como interveio por diversas vezes junto dos órgãos do poder da cidade para evitar a deriva ditatorial que o bispo de Alexandria conduziu contra “pagãos” e Judeus. Um filme também, “Ágora” de Alejandro Amenábar, foca este terrível momento histórico, quando a capital cultural do mundo antigo sofre o seu mais hediondo atentado.
Estas perseguições, tantas delas saldadas pelo morticínio dos sacerdotes e sacerdotizas “pagãs” assim como de quantos as defendessem, obrigam os cidadãos que desejam conservar a sua preponderância social e política a “converter-se” em massa, assim renunciando aos antigos deuses e assim, também à defesa dos seus antigos lugares sagrados, agora arrasados pela fúria devastadora de multidões de fanáticos ignorantes, que não poupam as obras-primas da arquitectura clássica, as esculturas e todas as manifestações artísticas e culturais nascidas do génio humano, identificando-as com o mal e, assim, reduzindo o corpo humano e as suas representações ao domínio do próprio Demónio
O mito de ter sido a própria Igreja católica a preservar, através dos mosteiros, grande parte desse património, cai pela base quando sabemos que cerca de 90 % das obras literárias greco-romanas foram destruídas selvaticamente e as suas folhas em pergaminho raspadas dos seus conteúdos clássicos para as preencher com textos teológicos cristãos, transcrições da Bíblia e diverso sermonário no espaço antes ocupado por peças de teatro, poesia lírica e épica, tratados filosóficos e científicos, obras históricas e mitológicas de autores de que hoje apenas conhecemos os nomes.
Na verdade, a partir do desenvolvimento do movimento monacal, vemos a preservação nos “scriptoria” dos conventos de um número razoável de escritos, muitos deles copiados pelos momges copistas, mesmo assim apenas uma infinitésima parte de tudo quanto antes fora destruído, queimado, profanado. Estes textos, como é visível noutro romance histórico, “O Nome da Rosa” de Humberto Eco, também passado ao cinema, não estavam disponíveis para o público mas apenas para uma elite religiosa, supostamente “vacinada” contra a perigosidade de textos de tal modo heréticos...
Hoje ficamos chocados com a barbárie do “estado islâmico” e as destruições causadas pelos seus prosélitos nas cidades sobreviventes do mundo antigo. Por isso transcrevo da primeira página do obra de Catherine Nixey um excerto muito ilustrativo, não esquecendo que se refere ao século VI d.C. e não ao XXI:
A própria ideia largamente generalizada de terem sido os Cristãos martirizados aos milhares por todos os imperadores não corresponde inteiramente à verdade num mundo em que havia larguíssima tolerância religiosa englobando os próprios Cristãos. É claro que é bem real o episódio sangrento das perseguições de Nero, com base na sua procura de bodes expiatórios para o grande incêndio de Roma. No entanto, as perseguições documentadas até ao reinado de Constantino não são massivas, sendo antes casos excepcionais, pontuais mesmo, muitas vezes provocadas pelo próprio proselitismo de numerosos cristãos, desejosos de encontrar no martírio a glória de Deus.
Mas a partir do momento em que o Cristianismo se torna religião oficial do Estado, logo começam novas perseguições, desta vez sistemáticas, mas aos “pagãos” e à sua religião, assim como a todas as correntes filosóficas greco-latinas, do Epicurismo ao Estoicismo, com única excepção de alguns dos ensinamentos de Platão e Aristóteles, que posteriormente acabariam por ser adoptados parcialmente pelas doutrinas da Igreja.
É paradigmática a destruição da Biblioteca de Alexandria e o monstruoso assassínio, com inacreditável crueldade – esfolada em vida! – de uma mulher excepcional, filósofa e cientista, Hipátia, que não só não se submeteu às limitações a que a doutrina cristã sempre quis reduzir o seu sexo, como interveio por diversas vezes junto dos órgãos do poder da cidade para evitar a deriva ditatorial que o bispo de Alexandria conduziu contra “pagãos” e Judeus. Um filme também, “Ágora” de Alejandro Amenábar, foca este terrível momento histórico, quando a capital cultural do mundo antigo sofre o seu mais hediondo atentado.
Estas perseguições, tantas delas saldadas pelo morticínio dos sacerdotes e sacerdotizas “pagãs” assim como de quantos as defendessem, obrigam os cidadãos que desejam conservar a sua preponderância social e política a “converter-se” em massa, assim renunciando aos antigos deuses e assim, também à defesa dos seus antigos lugares sagrados, agora arrasados pela fúria devastadora de multidões de fanáticos ignorantes, que não poupam as obras-primas da arquitectura clássica, as esculturas e todas as manifestações artísticas e culturais nascidas do génio humano, identificando-as com o mal e, assim, reduzindo o corpo humano e as suas representações ao domínio do próprio Demónio
O mito de ter sido a própria Igreja católica a preservar, através dos mosteiros, grande parte desse património, cai pela base quando sabemos que cerca de 90 % das obras literárias greco-romanas foram destruídas selvaticamente e as suas folhas em pergaminho raspadas dos seus conteúdos clássicos para as preencher com textos teológicos cristãos, transcrições da Bíblia e diverso sermonário no espaço antes ocupado por peças de teatro, poesia lírica e épica, tratados filosóficos e científicos, obras históricas e mitológicas de autores de que hoje apenas conhecemos os nomes.
Na verdade, a partir do desenvolvimento do movimento monacal, vemos a preservação nos “scriptoria” dos conventos de um número razoável de escritos, muitos deles copiados pelos momges copistas, mesmo assim apenas uma infinitésima parte de tudo quanto antes fora destruído, queimado, profanado. Estes textos, como é visível noutro romance histórico, “O Nome da Rosa” de Humberto Eco, também passado ao cinema, não estavam disponíveis para o público mas apenas para uma elite religiosa, supostamente “vacinada” contra a perigosidade de textos de tal modo heréticos...
Hoje ficamos chocados com a barbárie do “estado islâmico” e as destruições causadas pelos seus prosélitos nas cidades sobreviventes do mundo antigo. Por isso transcrevo da primeira página do obra de Catherine Nixey um excerto muito ilustrativo, não esquecendo que se refere ao século VI d.C. e não ao XXI:
“Os destruidores vieram do deserto. Palmira devia estar à sua espera: durante anos, bandos saqueadores de fanáticos de barba e túnicas negras, armados com pouco mais do que pedras, barras de ferro e um sentido férreo de justiça tinham vindo aterrorizar o leste do Império Romano.
Os seus ataque eram primitivos, brutais, e muito eficazes. Estes homens moviam-se em matilhas – mais tarde em enxames de até quinhentos elementos - e quando surgiam seguia-se-lhes a absoluta destruição [...] Grande colunas de pedra que se erguiam há séculos caíam numa só tarde, estátuas que se haviam erguido durante meio milénio viam de súbito os seus rostos mutilados; templos que haviam assistido à ascensão do Império Romano caíam num só dia”.
Os seus ataque eram primitivos, brutais, e muito eficazes. Estes homens moviam-se em matilhas – mais tarde em enxames de até quinhentos elementos - e quando surgiam seguia-se-lhes a absoluta destruição [...] Grande colunas de pedra que se erguiam há séculos caíam numa só tarde, estátuas que se haviam erguido durante meio milénio viam de súbito os seus rostos mutilados; templos que haviam assistido à ascensão do Império Romano caíam num só dia”.
Insistir, para quê? Os actos falam por si e o paralelismo entre o fanatismo dos “cristãos” vitoriosos dos primeiros séculos e a barbárie “islâmica” deste princípio do século XXI demonstra a triste repetição dos erros que há milénios assombram e ensombram a espécie humana.
Olhamos com esperança as excepções ao paradigma do ódio, dos ódios. Ingenuidade, ou simples prova de que ainda existe na espécie humana a semente de um futuro digno de se viver?
Olhamos com esperança as excepções ao paradigma do ódio, dos ódios. Ingenuidade, ou simples prova de que ainda existe na espécie humana a semente de um futuro digno de se viver?
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