VOLTA,
FLORENCE NIGHTINGALE!
Carlos
Rodarte Veloso
“O Templário”, 14 de Fevereiro de 2019
Há na discussão pública em torno da
“greve cirúrgica” dos enfermeiros um aspecto que torna muito problemático o
apoio a uma luta que se eterniza e, por isso mesmo, acaba por ferir gravemente
os direitos dos principais lesados, os doentes.
Sabemos bem que a greve é um direito
inalienável numa democracia e, por isso, se levantam vozes indignadas contra
qualquer limite que lhe seja imposto, no caso presente a requisição civil
convocada pelo Governo, perante os já milhares de pacientes que vêem adiadas as
respectivas intervenções cirúrgicas, adiamentos que em muitos casos atingem
muitos meses de espera, com o perigo evidente de se perder a oportunidade de
atalhar males maiores para a saúde e, até, a vida dos mesmos.
Poderão argumentar os enfermeiros
grevistas que são garantidos os serviços mínimos, mas tudo leva a crer que
assim não é, de acordo com as declarações da Ministra da Saúde. E que o fossem,
a verdade é que não estamos aqui a lidar com as peças inertes de máquinas ou
com um tema que possa sem perigo público ser adiado sine die. Trata-se de
Pessoas!
No caso específico desta greve, os
profissionais estão deontologicamente ligados indissoluvelmente ao juramento
que lhes permitiu o acesso à prática da enfermagem, juramento baseado no dos
médicos, o Juramento de Hipócrates, compromisso milenar que, actualizado em
2017, vai ao encontro do de Florence Nightingale*, que tomo a liberdade de
transcrever a seguir:
“Livre e
solenemente, em presença de Deus e desta assembleia juro: dedicar a minha vida
profissional ao serviço da humanidade, respeitando a dignidade e os direitos da
pessoa humana; exercendo a Enfermagem com consciência e fidelidade; guardar sem
desfalecimento, os segredos que me forem confiados; respeitar a vida desde a
conceção até a morte, não praticar voluntariamente atos que coloquem em risco a
integridade física ou psíquica do ser humano; manter elevados os ideais da
minha profissão, obedecendo aos preceitos da ética e da moral, preservando sua
honra, seu prestígio e suas tradições.”
É evidente a contradição desta
recusa em “praticar voluntariamente atos que coloquem em risco a integridade
física ou psíquica do ser humano” e o adiamento sucessivamente dilatado de
intervenções cirúrgicas que poderão reverter, no limite, no agravamento
irreversível dos males sentidos por esta “carne para canhão” em que se
convertem estes doentes, apenas números para os organizadores da greve.
Podem os enfermeiros implicados
proclamar à vontade o estarem a cumprir os “serviços mínimos” que lhes estão
imposto pela lei, porque, mesmo que seja esse o caso, as leis humanas não se
aplicam à natureza, e nunca haverá garantias de que estes adiamentos não
prejudiquem gravemente os pacientes.
Esta insensibilidade, tão estranha
aos altos ideais da profissão, não se apercebe sequer de que as principais
vítimas da sua inflexibilidade são as pessoas que têm como única alternativa
para a assistência médica o Serviço Nacional de Saúde, impossibilitadas que
estão de recorrer aos serviços da saúde privados.
No
fundo trata-se de uma greve de classe, não contra os poderosos mas contra o
povo pobre e remediado, que não tem mais remédio para os seus males do que
arrastar-se penosamente aos hospitais, pagando transportes que lhes prejudicam
gravemente o orçamento doméstico, para logo regressar a suas casas sem ter
recebido o necessário tratamento, todas as vezes que a agenda política
claramente partidária de alguns dos promotores deste movimento os impede de
receber em tempo a necessária intervenção.
Quando falo de agenda política,
refiro-me especialmente à bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco,
antes dirigente do PSD, que se assume, totalmente à margem das boas práticas
das suas funções, como autêntica dirigente sindical.
A própria escalada de
reivindicações, aumentadas sucessivamente de forma a impossibilitar o cabimento
das mesmas no orçamento do Estado, são prova evidente de má-fé, para mais na
situação económica de Portugal, cuja relativa melhoria não autoriza grandes
liberalidades.
Também
é vergonhosa a utilização de crowdfunding, ainda por cima de origem anónima,
para financiar uma greve que, legalmente, apenas devia depender dos próprios
associados dos respectivos sindicatos. Aliás, as próprias quantias obtidas
desta forma, são altamente suspeitas dada a sua dimensão.
Há
nisto tantas atitudes negativas, que é impossível incluir esta luta nas justas
aspirações dos trabalhadores. Por isso considero absolutamente desprezível
confundir a defesa do direito à saúde que a requisição civil tenta garantir,
com uma atitude antidemocrática por parte do Governo. Para mais quando,
teimosamente, os organizadores da greve ameaçam estendê-la até às Eleições! Que
outra prova seria necessária para provar a má-fé e a agenda política deste
movimento?
*Florence
Nightingale (1820-1910) – pioneira no tratamento de feridos durante a Guerra da
Crimeia, considerada heroína da Inglaterra, é a criadora da primeira escola
secular de enfermagem em Londres. O Dia Internacional da Enfermagem é
comemorado anualmente na data do seu aniversário.