quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019



IGREJA MATRIZ DA ATALAIA

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 28 de Fevereiro de 2019

            A Igreja matriz da Atalaia é templo renascentista atribuído à traça de João de Castilho ou de artista da sua escola ligado à obra do Convento de Cristo. A sua raiz cantábrica ou seja, a mesma origem do referido arquitecto, parece caucionada pela invulgar volumetria da fachada, com torre central, como aliás a de outra obra garantidamente sua, a Igreja matriz de Areias, que reconstruiu c. 1548.

Igreja matriz da Atalaia (foto C.Veloso)

O portal monumental da Atalaia é decorado com belíssimos relevos da autoria de João de Ruão, de que fazem parte as imagens de S. Pedro e S. Paulo, além de excelentes medalhões “ao romano” enquadrados por grutescos do tipo “candelabro”. Parte deste magnífico portal foi infelizmente danificado pela desastrosa “limpeza” por jacto de areia efectuada há alguns anos.

 João de Ruão – Imagem de S. Pedro (foto C.Veloso)

O interior do templo, de três naves limitadas por colunas jónicas, tem capela-mor abobadada com nervuras de cruzaria de ogiva, onde foi colocada, em substituição do retábulo barroco aí existente por alturas das obras dos anos 40 do século XX, uma excelente escultura em pedra da “Virgem com o Menino”, da autoria de Diogo Pires-o-Velho.


Diogo Pires o Velho – "A Virgem com o Menino" (foto C.Veloso)

O corpo da igreja é animado por duas séries de painéis de azulejos azuis, amarelos e brancos do século XVII, de feitura ingénua, narrativos de temas do Antigo e do Novo Testamento, de que destaco a “Adoração da Virgem”.

Azulejo “Adoração da Virgem” (foto C.Veloso)
Instalado na capela-mor, sobressai o túmulo barroco do 2º Cardeal de Lisboa, D. José Manuel da Câmara famoso pela sua antipatia – mútua – em relação ao Marquês de Pombal.
Esta igreja serviu de modelo à matriz do Entroncamento, dedicada à Sagrada Família, cuja primeira pedra foi lançada em 1937, sendo assim um excelente exemplo do revivalismo neo-renascença.


sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019



A CASA DOS PATUDOS DE ALPIARÇA

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 21 de Fevereiro de 2019


            A Casa dos Patudos em Alpiarça, mandada construir no início do século passado pelo grande político e estadista da República, intelectual e filantropo José Relvas, obra cometida ao arquitecto Raul Lino, é um solar de dimensões consideráveis, dispondo de 101 divisões, decoradas e recheadas com milhares de obras de arte de todas as categorias, desde a pintura e a escultura às artes decorativas e à música, representando o que de melhor existe em Portugal.
            A arquitectura deste solar integra-se no historicismo neomedieval então em voga no nosso país, associado a uma forte tendência no sentido da valorização da “casa portuguesa” de que este arquitecto seria um notável defensor e promotor, tanto na teoria como na prática.

Fig.1

            Seria difícil resumir a fabulosa variedade e abundância de obras de arte aqui existentes, para além da riqueza humana de informação sobre o proprietário e seus familiares e a tragédia que se abateu sobre a sua família. De facto, a morte por suicídio do seu último filho e herdeiro, segundo parece fugindo a um casamento imposto pela própria mãe, foi o golpe de misericórdia na própria unidade familiar, e teria motivado a herança da totalidade do seu património ao povo e à autarquia de Alpiarça depois da separação “de facto” dos dois cônjuges.
            No entanto, não é o Romantismo que forma o cerne das suas simpatias artísticas, mas o Realismo, apesar da presença, na sua colecção, de obras de Miguel Lupi e Tomás da Anunciação, pintores românticos por excelência.
            As amizades pessoais de José Relvas, nomeadamente com Rafael e Columbano Bordalo Pinheiro, Silva Porto, José Malhoa e Soares dos Reis, além do próprio Raul Lino, e ainda de Costa Mota, Teixeira Lopes, Marques de Oliveira, Roque Gameiro, e Constantino Fernandes, cujo espólio, desde estudos a obras acabadas, rechearam com as suas obras os aposentos desta notável Casa.
Esta diversidade é acompanhada de valiosíssimas peças de artistas de outras épocas, nações e sensibilidades como Francisco Henriques, Josefa de Óbidos, Machado de Castro, Vieira Portuense, Domingos António Sequeira, e Delacroix, Romney, Murillo, Zurbaran, além de seleccionado mobiliário, tapeçaria, azulejaria e faiança, e preciosa porcelana, de que destaco dois notáveis conjuntos de Meissen (“Apolo e as 9 Musas” e “Alegoria das Artes”), além de excelentes serviços de Sèvres e Companhia das Índias.
            Esta enumeração apenas peca por defeito, representando a mais rica colecção de Arte existente em Portugal fora dos grandes centros populacionais.

Fig.2
  
Fig.3

Fig.4



Imagens (Fotos de C.Veloso):
1.      Vista geral da Casa dos Patudos
2.      Columbano, “O Atelier de Silva Porto”
3.      Teixeira Lopes, “Caim”
4.      Porcelana de Meissen

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019



VOLTA, FLORENCE NIGHTINGALE!

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 14 de Fevereiro de 2019

            Há na discussão pública em torno da “greve cirúrgica” dos enfermeiros um aspecto que torna muito problemático o apoio a uma luta que se eterniza e, por isso mesmo, acaba por ferir gravemente os direitos dos principais lesados, os doentes.
            Sabemos bem que a greve é um direito inalienável numa democracia e, por isso, se levantam vozes indignadas contra qualquer limite que lhe seja imposto, no caso presente a requisição civil convocada pelo Governo, perante os já milhares de pacientes que vêem adiadas as respectivas intervenções cirúrgicas, adiamentos que em muitos casos atingem muitos meses de espera, com o perigo evidente de se perder a oportunidade de atalhar males maiores para a saúde e, até, a vida dos mesmos.
            Poderão argumentar os enfermeiros grevistas que são garantidos os serviços mínimos, mas tudo leva a crer que assim não é, de acordo com as declarações da Ministra da Saúde. E que o fossem, a verdade é que não estamos aqui a lidar com as peças inertes de máquinas ou com um tema que possa sem perigo público ser adiado sine die. Trata-se de Pessoas!
            No caso específico desta greve, os profissionais estão deontologicamente ligados indissoluvelmente ao juramento que lhes permitiu o acesso à prática da enfermagem, juramento baseado no dos médicos, o Juramento de Hipócrates, compromisso milenar que, actualizado em 2017, vai ao encontro do de Florence Nightingale*, que tomo a liberdade de transcrever a seguir:


            “Livre e solenemente, em presença de Deus e desta assembleia juro: dedicar a minha vida profissional ao serviço da humanidade, respeitando a dignidade e os direitos da pessoa humana; exercendo a Enfermagem com consciência e fidelidade; guardar sem desfalecimento, os segredos que me forem confiados; respeitar a vida desde a conceção até a morte, não praticar voluntariamente atos que coloquem em risco a integridade física ou psíquica do ser humano; manter elevados os ideais da minha profissão, obedecendo aos preceitos da ética e da moral, preservando sua honra, seu prestígio e suas tradições.” 
            É evidente a contradição desta recusa em “praticar voluntariamente atos que coloquem em risco a integridade física ou psíquica do ser humano” e o adiamento sucessivamente dilatado de intervenções cirúrgicas que poderão reverter, no limite, no agravamento irreversível dos males sentidos por esta “carne para canhão” em que se convertem estes doentes, apenas números para os organizadores da greve.
            Podem os enfermeiros implicados proclamar à vontade o estarem a cumprir os “serviços mínimos” que lhes estão imposto pela lei, porque, mesmo que seja esse o caso, as leis humanas não se aplicam à natureza, e nunca haverá garantias de que estes adiamentos não prejudiquem gravemente os pacientes.
            Esta insensibilidade, tão estranha aos altos ideais da profissão, não se apercebe sequer de que as principais vítimas da sua inflexibilidade são as pessoas que têm como única alternativa para a assistência médica o Serviço Nacional de Saúde, impossibilitadas que estão de recorrer aos serviços da saúde privados.
No fundo trata-se de uma greve de classe, não contra os poderosos mas contra o povo pobre e remediado, que não tem mais remédio para os seus males do que arrastar-se penosamente aos hospitais, pagando transportes que lhes prejudicam gravemente o orçamento doméstico, para logo regressar a suas casas sem ter recebido o necessário tratamento, todas as vezes que a agenda política claramente partidária de alguns dos promotores deste movimento os impede de receber em tempo a necessária intervenção.
            Quando falo de agenda política, refiro-me especialmente à bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, antes dirigente do PSD, que se assume, totalmente à margem das boas práticas das suas funções, como autêntica dirigente sindical.
            A própria escalada de reivindicações, aumentadas sucessivamente de forma a impossibilitar o cabimento das mesmas no orçamento do Estado, são prova evidente de má-fé, para mais na situação económica de Portugal, cuja relativa melhoria não autoriza grandes liberalidades.
Também é vergonhosa a utilização de crowdfunding, ainda por cima de origem anónima, para financiar uma greve que, legalmente, apenas devia depender dos próprios associados dos respectivos sindicatos. Aliás, as próprias quantias obtidas desta forma, são altamente suspeitas dada a sua dimensão.
Há nisto tantas atitudes negativas, que é impossível incluir esta luta nas justas aspirações dos trabalhadores. Por isso considero absolutamente desprezível confundir a defesa do direito à saúde que a requisição civil tenta garantir, com uma atitude antidemocrática por parte do Governo. Para mais quando, teimosamente, os organizadores da greve ameaçam estendê-la até às Eleições! Que outra prova seria necessária para provar a má-fé e a agenda política deste movimento?

*Florence Nightingale (1820-1910) – pioneira no tratamento de feridos durante a Guerra da Crimeia, considerada heroína da Inglaterra, é a criadora da primeira escola secular de enfermagem em Londres. O Dia Internacional da Enfermagem é comemorado anualmente na data do seu aniversário.

sábado, 9 de fevereiro de 2019


NEGAR A EVIDÊNCIA PARA VIVER TRANQUILO ATÉ AO FIM
Carlos Rodarte Veloso
"O Templário", 7 de Fevereiro de 2019

O presidente Trump, como tantas almas simples que o elegeram e os muitos milhões que o seguem beatamente pelo mundo inteiro, batem o dente sob as negativíssimas temperaturas que os Estados Unidos têm experimentado nos últimos dias, nomeadamente os 30 graus negativos de Chicago e os 54 do Dacota do Norte registados na manhã do passado dia 30.
No entanto, as previsões dos cientistas são ainda mais aterradoras, embora para os negacionistas das alterações climáticas eles não passem de terroristas, apostados em atacar as fontes de riqueza do punhado de multimilionários que mantém teimosamente a exploração dos recursos mais poluentes do planeta e se recusam a inverter esta tendência suicidária, no pouco tempo que lhes resta… no pouco tempo que NOS resta, sob pena de os sobreviventes, “eles”, evidentemente, poderem contar ainda com confortáveis bunkers climatizados e abastecidos de todas as coisas boas da moribunda civilização que sugaram até ao tutano, quais vampiros de Zeca Afonso, ATÉ AO FIM!
Claro que toda a população mundial sente, mais ou menos esta inverno polar, mas é a América do Norte a mais atingida, mormente os Estados Unidos que são, poeticamente, os principais responsáveis, aliás impenitentes pelas gravíssimas alterações climáticas que, tudo indica, vieram para se perpetuar, ora nos máximos, ora nos mínimos das temperatura, provocando fenómenos cada vez mais violentos e sempre extremos.
Só não o vê quem se recusa a retirar a cabeça da areia e as últimas declarações de Donald Trump, publicitadas através da sua forma preferida de comunicação com o mundo, o twitter, “aproveitam”, aliás tão “inteligentemente” como é seu apanágio, a maré, e levam-no a ironizar: “Nos próximos dias espera-se que fique ainda mais frio. Que inferno está a acontecer com o Aquecimento Global? Por favor, volte depressa que precisamos de si!”
O imediatismo do pretenso líder do mundo é manifesto, no mesmo nível com que os antigos viam o Sol a girar à volta da Terra, ou os deuses a provocar terramotos, ou a “terra plana”, ou outro disparate qualquer.
Segundo os cientistas, terá sido o aquecimento repentino do Pólo Norte provocado por uma frente quente vinda de Marrocos no mês de Setembro, que dividiu o vórtice polar – que rodeia a estratosfera junto ao Pólo Norte – deslocando-o para o sul dos Estados Unidos. Tal como no caso da aparente rotação do Sol à volta da Terra, não podemos confiar inteiramente nos sentidos. Dizia Shakespeare, de forma alguma antagonista da Ciência, pela boca de Hamlet, dirigindo-se a Horácio "Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a tua vã filosofia"


Esta frase com 418 anos de idade, convite à reflexão e, muito antes de Descartes, à dúvida metódica, mete no bolso todos os “raciocínios” saloios deste exemplar paleolítico que, em pleno século XXI, se ridiculariza a si próprio, como é próprio dos asnos, sem ofensa para os simpáticos burricos.

domingo, 3 de fevereiro de 2019


IMAGEM DO ÍNDIO BRASILEIRO 
NA CULTURA OCIDENTAL

Carlos Rodarte Veloso 

Correio Transmontano”, 3 de Fevereiro de 2019

Mapa de Lopo Homem-Reinéis 
ou Mapa Miller. 1519


Os índios brasileiros ou, melhor, o que resta deles depois do doloroso processo de aculturação, em muitos casos de genocídio correspondente à sua descoberta pelos portugueses e às várias atitudes que estes e os restantes europeus para com eles tiveram, passaram sucessivamente, do estatuto de gente intocada ainda pelo “pecado original”, ao de seres brutais e maléficos, de acordo com os interesses ideológicos de cada época, marcados profundamente nas suas diversas vertentes: dogmática, sob a chefia da Santa Sé, missionária, liderada pela Companhia de Jesus e outras ordens religiosas, civil e colonizadora, submetida aos interesses dos colonos.
A primeira das fontes iconográficas que explicitamente representam os índios do Brasil é a cartografia, onde imagens exóticas mas nem por isso menos expressivas, representam, além de fauna e flora nativas, índios apenas enfeitados com os cocares tradicionais, com um realismo que só se pode dever à observação directa ou ao testemunho de navegadores.
É o caso também de representações altamente cruas de cenas de antropofagia, em consonância com “descrições” desde o início do século XVI divulgadas pela Europa, narrando costumes canibais de uma brutalidade e vulgaridade que em muito ultrapassam o canibalismo ritual praticado pelos índios brasileiros, afastando-o assim, cada vez mais, da representação do “bom selvagem” que adivinhamos na Carta do Achamento de Pero Vaz de Caminha.
Também em pinturas portuguesas de gosto já renascentista posteriores à descoberta do Brasil se detecta grande dissonância relativamente aos sentimentos despertados nos respectivos artistas.
Assim, na Adoração dos Magos do Museu Grão Vasco, o rei mago negro, tradicionalmente designado como Baltasar, é substituído por um índio brasileiro tupinambá adornado com traje de folhas e coberto com o respectivo cocar emplumado e no Calvário do mesmo Museu, atribuído ao próprio Grão Vasco, o Bom Ladrão é representado com feições e cabeleira que o identificam inequivocamente como um índio brasileiro. Em ambos os casos, como é óbvio, a imagem do Índio encontra-se identificada com o Bem.
Em sentido inverso, no famoso Inferno do Museu Nacional de Arte Antiga, pintado possivelmente pelo pintor régio Jorge Afonso, surge um índio brasileiro reconhecível pelos seus atavios tradicionais, a presidir ao suplício dos condenados na qualidade do próprio rei dos Infernos, enquanto um outro diabo também vestido com penas multicolores, transporta às costas um frade luxurioso!…
Um longo caminho fora percorrido desde que a Carta de Pero Vaz de Caminha que apresentava os índios brasileiros na sua simplicidade total, na inocência mais transparente, livres ainda do próprio pecado original, num paraíso perdido… Navegadores e Jesuítas alimentaram desde logo essa ideia idílica, mais tarde institucionalizada no quadro do Iluminismo pelo mito do “bom selvagem”, terreno virgem para a sementeira da Fé, o que levou o papa Paulo III a reconhecer a racionalidade e a habilitação destes “selvagens” para a Fé católica, não admitindo que eles fossem privados da liberdade. Nascia assim a questão que desde então opôs a Igreja aos colonos, os quais não concebiam sequer a hipótese de se verem assim privados de tão grande número de potenciais escravos. Este conflito viria a arrastar-se, penosamente, até ao consulado do marquês de Pombal, que os liberta de qualquer servidão, concedendo-lhes ainda numerosos direitos civis..
Desde então assiste-se a um gradual aumento da protecção legal ao indígena brasileiro, com altos e baixos mas sempre no sentido de reconhecer os seus direitos civis e, concomitantemente, a protecção das extensíssimas áreas florestais em que habitava, áreas essas que até há algum tempo têm contribuído para proteger o meio ambiente a nível planetário.
A recente eleição de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil, em contracorrente com os anteriores governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, surge como uma ameaça mortal para os índios e, muito directamente, para a destruição do ambiente, pois, em consonância com a política do presidente norte-americano Trump, defende irracionalmente a ideia da inexistência do aquecimento global e das drásticas alterações climáticas que tanta tragédia tem trazido a grande parte do planeta, mantendo todas as práticas industriais há muito condenadas pela Ciência e recusando os urgentes acordos internacionais nesse sentido.
Mais ainda, Bolsonaro alimenta a feroz perseguição, com laivos de genocídio, contra os povos nativos do Brasil, através da sua confinação a reservas que se tornam mais e mais reduzidas, à medida que o espaço florestal e selvagem é usurpado pela exploração agrícola e industrial, tendo em conta única e simplesmente o lucro capitalista.
A agressividade dos invasores dessas terras está armada até aos dentes com armas de fogo e surge agora desenfreada pela protecção conferida pelo novo Presidente da República.
Entretanto, Bolsonaro que, em plena campanha eleitoral não deixou dúvidas quanto aos seus propósitos, prometeu acabar com a demarcação de reservas, aquilo a que chamou “activismo ambiental xiita”, de novo diabolizando o Índio, assim o transformando, de novo, no “vilão da história”, como convém aos grandes interesses capitalistas que o querem expropriar do território que ainda lhe resta.
Estão assim em grave perigo os sobreviventes nativos do grande país que é o Brasil. Este retrocesso civilizacional, como tantos outros a que hoje se assiste por esse mundo, torna repugnante qualquer benevolência, por muito diplomática que seja, para com o hediondo presidente do Brasil, evidente fascista e defensor do criminoso regime militar que governou o Brasil de 1964 e 1985, agora também apoiante do genocídio dos nativos brasileiros!

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019



GIL VICENTE E OS JUDEUS

Carlos Rodarte Veloso

"O Templário", 31 de Janeiro de 2019

Gil Vicente, o pai do Teatro português, transmite nas suas peças mais conhecidas muitos dos estereótipos e insultos popularmente atribuídos aos Judeus manifestando, assim uma atitude estereotipadamente anti-semita.
Isso é notório no Auto da Barca do Inferno (1517), na peça O Juiz da Beira (c.1525), no Diálogo sobre a Ressurreição (1527) e na trova satírica que dedica, ao trovador cortesão Afonso Lopes Sapaio, da famosa família dos Sapaio de Tomar, onde o acusa de ser “cristão fingido”.
O mesmo Gil Vicente apresentou, em 1523, no Convento de Cristo e perante toda a corte de D. João III, a sua famosa Farsa de Inês Pereira, segundo parece baseada em figuras e factos reais passados nos arredores de Tomar Note-se, entretanto, que a peça não foi decerto representada no Claustro da Hospedaria, nem no dos Corvos, como refere Amorim Rosa, visto que ambos os claustros só viriam a ser construídos mais de vinte anos depois.
Nessa peça, a protagonista refere-se aos judeus como covardes e são também dois “judeus casamenteiros”, versão masculina e odiosa das detestáveis alcoviteiras, que lhe arranjam péssimo casamento com o escudeiro Brás da Mata, a quem pedem bom pagamento, assim vincando o estereótipo da ganância judaica.
Contudo, há exactamente 488 anos, na sequência de um terrível sismo que destruiu boa parte da cidade de Lisboa, terramoto menos publicitado nas fontes históricas que o de 1755 mas, mesmo assim, altamente destruidor e cujos efeitos se fazem sentir por todo o país, Gil Vicente envia ao rei uma famosíssima carta – a “Carta que Gil Vicente mandou de Santarém a El-Rei D. João III, estando S. A. em Palmela, sobre o tremor de terra, que foi a 26 de Janeiro de 1531”
 Na referida carta, Gil Vicente então com 66 anos de idade, assume corajosamente a defesa dos cristãos-novos, acusados por frades locais de serem, entre outras causas supersticiosas, os culpados pelo terramoto então ocorrido. Mais do que isso, transcreve o discurso que proferiu no claustro de S. Francisco naquela cidade, e que levou à pacificação dos ânimos dos frades e dos civis escalabitanos, que teriam começado a perseguir a “gente de nação”.
Que esta defesa não foi um acto avulso, prova-o o seu Auto da Lusitânia, apresentado no ano seguinte, que mostra as melhores qualidades numa família judaica, onde reina grande união e amor. Neste texto é evidente o desejo da integração dos cristãos-novos na sociedade portuguesa.
E em 1533, com 68 anos, representa em Évora o Auto dos Agravados, o mais demolidor libelo contra a corrupção e a estupidez da Corte. Os seus alvos são cortesãos muito próximos do rei e o alto clero que “assenta mitra em cabeça d’asno”. Não podia ser mais claro, nem mais corajoso, quando a Inquisição preparava a sua entrada em Portugal, que ocorreria em 1536. Por acaso ou não, mestre Gil morre em Évora esse mesmo ano, quando D. João III consegue finalmente a autorização de Roma para criar o tribunal do Santo Ofício.
Hoje dificilmente acreditamos em coincidências, em “acasos”. Porque havemos de acreditar nelas no século XVI, quando não existia qualquer mecanismo legal para proteger os cidadãos contra a arbitrariedade com que a igreja actuava, se se sentia de alguma forma ferida na sua autoridade?

Painel de azulejos do Museu de Azulejo ~ fragmento do “Grande  Panorama de Lisboa” datado do ano  de 1700, da autoria de Gabriel del Barco, testemunho iconográfico da cidade de Lisboa anterior ao Terramoto de 1755.