sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019



VOLTA, FLORENCE NIGHTINGALE!

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 14 de Fevereiro de 2019

            Há na discussão pública em torno da “greve cirúrgica” dos enfermeiros um aspecto que torna muito problemático o apoio a uma luta que se eterniza e, por isso mesmo, acaba por ferir gravemente os direitos dos principais lesados, os doentes.
            Sabemos bem que a greve é um direito inalienável numa democracia e, por isso, se levantam vozes indignadas contra qualquer limite que lhe seja imposto, no caso presente a requisição civil convocada pelo Governo, perante os já milhares de pacientes que vêem adiadas as respectivas intervenções cirúrgicas, adiamentos que em muitos casos atingem muitos meses de espera, com o perigo evidente de se perder a oportunidade de atalhar males maiores para a saúde e, até, a vida dos mesmos.
            Poderão argumentar os enfermeiros grevistas que são garantidos os serviços mínimos, mas tudo leva a crer que assim não é, de acordo com as declarações da Ministra da Saúde. E que o fossem, a verdade é que não estamos aqui a lidar com as peças inertes de máquinas ou com um tema que possa sem perigo público ser adiado sine die. Trata-se de Pessoas!
            No caso específico desta greve, os profissionais estão deontologicamente ligados indissoluvelmente ao juramento que lhes permitiu o acesso à prática da enfermagem, juramento baseado no dos médicos, o Juramento de Hipócrates, compromisso milenar que, actualizado em 2017, vai ao encontro do de Florence Nightingale*, que tomo a liberdade de transcrever a seguir:


            “Livre e solenemente, em presença de Deus e desta assembleia juro: dedicar a minha vida profissional ao serviço da humanidade, respeitando a dignidade e os direitos da pessoa humana; exercendo a Enfermagem com consciência e fidelidade; guardar sem desfalecimento, os segredos que me forem confiados; respeitar a vida desde a conceção até a morte, não praticar voluntariamente atos que coloquem em risco a integridade física ou psíquica do ser humano; manter elevados os ideais da minha profissão, obedecendo aos preceitos da ética e da moral, preservando sua honra, seu prestígio e suas tradições.” 
            É evidente a contradição desta recusa em “praticar voluntariamente atos que coloquem em risco a integridade física ou psíquica do ser humano” e o adiamento sucessivamente dilatado de intervenções cirúrgicas que poderão reverter, no limite, no agravamento irreversível dos males sentidos por esta “carne para canhão” em que se convertem estes doentes, apenas números para os organizadores da greve.
            Podem os enfermeiros implicados proclamar à vontade o estarem a cumprir os “serviços mínimos” que lhes estão imposto pela lei, porque, mesmo que seja esse o caso, as leis humanas não se aplicam à natureza, e nunca haverá garantias de que estes adiamentos não prejudiquem gravemente os pacientes.
            Esta insensibilidade, tão estranha aos altos ideais da profissão, não se apercebe sequer de que as principais vítimas da sua inflexibilidade são as pessoas que têm como única alternativa para a assistência médica o Serviço Nacional de Saúde, impossibilitadas que estão de recorrer aos serviços da saúde privados.
No fundo trata-se de uma greve de classe, não contra os poderosos mas contra o povo pobre e remediado, que não tem mais remédio para os seus males do que arrastar-se penosamente aos hospitais, pagando transportes que lhes prejudicam gravemente o orçamento doméstico, para logo regressar a suas casas sem ter recebido o necessário tratamento, todas as vezes que a agenda política claramente partidária de alguns dos promotores deste movimento os impede de receber em tempo a necessária intervenção.
            Quando falo de agenda política, refiro-me especialmente à bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, antes dirigente do PSD, que se assume, totalmente à margem das boas práticas das suas funções, como autêntica dirigente sindical.
            A própria escalada de reivindicações, aumentadas sucessivamente de forma a impossibilitar o cabimento das mesmas no orçamento do Estado, são prova evidente de má-fé, para mais na situação económica de Portugal, cuja relativa melhoria não autoriza grandes liberalidades.
Também é vergonhosa a utilização de crowdfunding, ainda por cima de origem anónima, para financiar uma greve que, legalmente, apenas devia depender dos próprios associados dos respectivos sindicatos. Aliás, as próprias quantias obtidas desta forma, são altamente suspeitas dada a sua dimensão.
Há nisto tantas atitudes negativas, que é impossível incluir esta luta nas justas aspirações dos trabalhadores. Por isso considero absolutamente desprezível confundir a defesa do direito à saúde que a requisição civil tenta garantir, com uma atitude antidemocrática por parte do Governo. Para mais quando, teimosamente, os organizadores da greve ameaçam estendê-la até às Eleições! Que outra prova seria necessária para provar a má-fé e a agenda política deste movimento?

*Florence Nightingale (1820-1910) – pioneira no tratamento de feridos durante a Guerra da Crimeia, considerada heroína da Inglaterra, é a criadora da primeira escola secular de enfermagem em Londres. O Dia Internacional da Enfermagem é comemorado anualmente na data do seu aniversário.

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