sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019



GIL VICENTE E OS JUDEUS

Carlos Rodarte Veloso

"O Templário", 31 de Janeiro de 2019

Gil Vicente, o pai do Teatro português, transmite nas suas peças mais conhecidas muitos dos estereótipos e insultos popularmente atribuídos aos Judeus manifestando, assim uma atitude estereotipadamente anti-semita.
Isso é notório no Auto da Barca do Inferno (1517), na peça O Juiz da Beira (c.1525), no Diálogo sobre a Ressurreição (1527) e na trova satírica que dedica, ao trovador cortesão Afonso Lopes Sapaio, da famosa família dos Sapaio de Tomar, onde o acusa de ser “cristão fingido”.
O mesmo Gil Vicente apresentou, em 1523, no Convento de Cristo e perante toda a corte de D. João III, a sua famosa Farsa de Inês Pereira, segundo parece baseada em figuras e factos reais passados nos arredores de Tomar Note-se, entretanto, que a peça não foi decerto representada no Claustro da Hospedaria, nem no dos Corvos, como refere Amorim Rosa, visto que ambos os claustros só viriam a ser construídos mais de vinte anos depois.
Nessa peça, a protagonista refere-se aos judeus como covardes e são também dois “judeus casamenteiros”, versão masculina e odiosa das detestáveis alcoviteiras, que lhe arranjam péssimo casamento com o escudeiro Brás da Mata, a quem pedem bom pagamento, assim vincando o estereótipo da ganância judaica.
Contudo, há exactamente 488 anos, na sequência de um terrível sismo que destruiu boa parte da cidade de Lisboa, terramoto menos publicitado nas fontes históricas que o de 1755 mas, mesmo assim, altamente destruidor e cujos efeitos se fazem sentir por todo o país, Gil Vicente envia ao rei uma famosíssima carta – a “Carta que Gil Vicente mandou de Santarém a El-Rei D. João III, estando S. A. em Palmela, sobre o tremor de terra, que foi a 26 de Janeiro de 1531”
 Na referida carta, Gil Vicente então com 66 anos de idade, assume corajosamente a defesa dos cristãos-novos, acusados por frades locais de serem, entre outras causas supersticiosas, os culpados pelo terramoto então ocorrido. Mais do que isso, transcreve o discurso que proferiu no claustro de S. Francisco naquela cidade, e que levou à pacificação dos ânimos dos frades e dos civis escalabitanos, que teriam começado a perseguir a “gente de nação”.
Que esta defesa não foi um acto avulso, prova-o o seu Auto da Lusitânia, apresentado no ano seguinte, que mostra as melhores qualidades numa família judaica, onde reina grande união e amor. Neste texto é evidente o desejo da integração dos cristãos-novos na sociedade portuguesa.
E em 1533, com 68 anos, representa em Évora o Auto dos Agravados, o mais demolidor libelo contra a corrupção e a estupidez da Corte. Os seus alvos são cortesãos muito próximos do rei e o alto clero que “assenta mitra em cabeça d’asno”. Não podia ser mais claro, nem mais corajoso, quando a Inquisição preparava a sua entrada em Portugal, que ocorreria em 1536. Por acaso ou não, mestre Gil morre em Évora esse mesmo ano, quando D. João III consegue finalmente a autorização de Roma para criar o tribunal do Santo Ofício.
Hoje dificilmente acreditamos em coincidências, em “acasos”. Porque havemos de acreditar nelas no século XVI, quando não existia qualquer mecanismo legal para proteger os cidadãos contra a arbitrariedade com que a igreja actuava, se se sentia de alguma forma ferida na sua autoridade?

Painel de azulejos do Museu de Azulejo ~ fragmento do “Grande  Panorama de Lisboa” datado do ano  de 1700, da autoria de Gabriel del Barco, testemunho iconográfico da cidade de Lisboa anterior ao Terramoto de 1755.


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