GIL VICENTE E OS JUDEUS
Carlos Rodarte Veloso
"O Templário", 31 de Janeiro de 2019
Gil Vicente, o pai do Teatro
português, transmite nas suas peças mais conhecidas muitos dos estereótipos e
insultos popularmente atribuídos aos Judeus manifestando, assim uma atitude
estereotipadamente anti-semita.
Isso é notório no Auto da Barca do Inferno (1517), na peça
O Juiz da Beira (c.1525), no Diálogo sobre a Ressurreição (1527) e na
trova satírica que dedica, ao trovador cortesão Afonso Lopes Sapaio, da famosa
família dos Sapaio de Tomar, onde o acusa de ser “cristão fingido”.
O mesmo Gil
Vicente apresentou, em 1523, no Convento de Cristo e perante toda a corte de D.
João III, a sua famosa Farsa de Inês
Pereira, segundo parece baseada em figuras e factos reais passados nos
arredores de Tomar Note-se, entretanto, que a peça não foi decerto representada
no Claustro da Hospedaria, nem no dos Corvos, como refere Amorim Rosa, visto que ambos os claustros só viriam
a ser construídos mais de vinte anos depois.
Nessa peça, a protagonista
refere-se aos judeus como covardes e
são também dois “judeus casamenteiros”, versão
masculina e odiosa das detestáveis alcoviteiras, que lhe arranjam péssimo
casamento com o escudeiro Brás da Mata, a quem pedem bom pagamento, assim
vincando o estereótipo da ganância judaica.
Contudo, há exactamente 488 anos,
na sequência de um terrível sismo que destruiu boa parte da cidade de Lisboa,
terramoto menos publicitado nas fontes históricas que o de 1755 mas, mesmo
assim, altamente destruidor e cujos efeitos se fazem sentir por todo o país,
Gil Vicente envia ao rei uma famosíssima carta – a “Carta que Gil Vicente
mandou de Santarém a El-Rei D. João III, estando S. A. em Palmela, sobre o
tremor de terra, que foi a 26 de Janeiro de 1531”
Na referida carta, Gil Vicente então com 66
anos de idade, assume corajosamente a defesa dos cristãos-novos, acusados por
frades locais de serem, entre outras causas supersticiosas, os culpados pelo
terramoto então ocorrido. Mais do que isso, transcreve o discurso que proferiu
no claustro de S. Francisco naquela cidade, e que levou à pacificação dos ânimos
dos frades e dos civis escalabitanos, que teriam começado a perseguir a “gente
de nação”.
Que esta defesa não foi um acto
avulso, prova-o o seu Auto da Lusitânia,
apresentado no ano seguinte, que mostra as melhores qualidades numa família
judaica, onde reina grande união e amor. Neste texto é evidente o desejo da
integração dos cristãos-novos na sociedade portuguesa.
E em 1533, com 68 anos, representa
em Évora o Auto dos Agravados, o mais
demolidor libelo contra a corrupção e a estupidez da Corte. Os seus alvos são
cortesãos muito próximos do rei e o alto clero que “assenta mitra em cabeça
d’asno”. Não podia ser mais claro, nem mais corajoso, quando a Inquisição
preparava a sua entrada em Portugal, que ocorreria em 1536. Por acaso ou não,
mestre Gil morre em Évora esse mesmo ano, quando D. João III consegue
finalmente a autorização de Roma para criar o tribunal do Santo Ofício.
Hoje dificilmente acreditamos em
coincidências, em “acasos”. Porque havemos de acreditar nelas no século XVI,
quando não existia qualquer mecanismo legal para proteger os cidadãos contra a
arbitrariedade com que a igreja actuava, se se sentia de alguma forma ferida na
sua autoridade?
Painel de azulejos do Museu de Azulejo ~ fragmento do “Grande Panorama de Lisboa” datado do ano de 1700, da autoria de Gabriel del Barco, testemunho iconográfico da cidade de Lisboa anterior ao Terramoto de 1755. |
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