segunda-feira, 27 de março de 2017


PIGMALIÃO E GALATEIA, UM MITO INTEMPORAL

Carlos Rodarte Veloso

Publicado no Correio Transmontano, 27-3-2017
    

                Quando, em 1890, o artista Jean-Léon Gérome dá corpo ao tema de Pigmalião, o artista que se apaixona pela obra que ele próprio criou, retoma assim um dos mitos mais enraizados no inconsciente colectivo do grupo masculino da humanidade. As suas duas pinturas, Pigmalião e Galateia (Fig. 1 e 2),  e também a escultura com o mesmo tema que produziu, representam o momento em que a pedra fria da estátua, ao ser enlaçada pelo escultor, ganha a cor e a plasticidade da matéria viva, correspondendo ao amplexo e ao beijo apaixonado do artista. Todo o ambiente que rodeia a cena está imbuído de referências greco-romanas, desde as máscaras teatrais da Tragédia e da Comédia ao Cupido — Eros — que da parede parece alvejar o casal com as suas flechas, do escudo decorado com a Górgona à pintura e modelos escultóricos neoclássicos, bem adequados ao gosto académico de Gérome.
                Há que acentuar que, sendo as suas obras pintadas depois dos sessenta anos, é uma das mais sensuais e uma das mais “românticas” produzidas por este académico e conservador empedernido, nitidamente obcecado pelo tema da metamorfose induzida pela vontade de um criador e pela força do Amor.
                Há, no entanto, algumas diferenças importantes entre o quadro de Gérome e o mito clássico em que se baseia. Este, com versões devidas a Apolodoro, Ovídio e Arnóbio, gira em torno da história do rei de Chipre que, apaixonado por Afrodite, deusa do Amor e da Beleza, tenta recriá-la numa estátua de marfim. Ao concluí-la, perfeita como o modelo que idealizara, é imenso o seu sofrimento, perante a frieza da matéria inerte. É então que Afrodite, sensibilizada pelo amor assim manifestado, dá vida à escultura, Galateia, que viria a dar dois filhos a Pigmalião. Toda a história remete para a força criadora do Amor, embora gravemente inquinada pelo carácter fortemente sexista da sociedade vigente.
                O mito de Pigmalião atravessou os séculos, representado em todas as épocas e, além de Gérome, foi retomado por outros artistas, nomeadamente por Burne-Jones com a sucessão de quadros Pigmalião e a Imagem (Fig. 3), e por René Magritte, com a sua pintura A Tentativa do Impossível, de 1928, não escapando à veia satírica de Daumier com o seu Pigmalião. O tema é igualmente retomado nas artes cénicas, num sentido mais simbólico, com a construção de uma nova mulher, mais bela, mais educada e em tudo perfeita, a partir da rude realidade de uma rapariga pobre e analfabeta. Assim acontece em Pigmalião, peça publicada em 1912 por Bernard Shaw (Fig.4) e em obras nela baseadas, como o popularíssimo filme musical My Fair Lady,  de George Cukor, estreado em 1964 (Fig.5) e premiado com uma verdadeira avalancha de “Óscares”. Aqui, vemos a filosofia machista do Pigmalião moderno confrontada pela sua criação, a nova Galateia, mulher no muito relativo caminho da emancipação que se trilhava no período em que a peça foi escrita. Há no entanto a considerar que o original de Bernard Shaw exclui o “happy end” hollywoodesco do casamento de Elisa com o seu tutor, antes a deixando, terminada a sua “educação”, numa situação muito fragilizada, trágica mesmo, excluida do mundo laboral em que nascera – que do mesmo modo a exclui – mas também à margem da elite a que, teoricamente, julgava ter acedido.
                A extraordinária popularidade deste tema, assente na metamorfose de um ser humano por intermédio de outro, mais preparado — leia-se: dominante —, está indissociavelmente ligado ao próprio tema geral da educação e das relações entre os sexos no período anterior à Primeira Guerra Mundial. Não é por acaso que vemos surgir, ulteriormente, no cinema e na literatura, atitudes de inversão destes papéis, em que é a protagonista a moldar o seu companheiro segundo os novos ideais socio-culturais… Consequência dos novos tempos, mas não aplicável ainda – longe disso! – a todas as sociedades nossas contemporâneas. 




quinta-feira, 23 de março de 2017


A Cidade das Flores - III
Carlos Rodarte Veloso
Publicado n’”O Templário” de 30-3-2017 


  Sendo a arte monumental de Florença de uma riqueza tal, é, no entanto, nas obras-primas da escultura e da pintura expostas nas suas praças, museus e igrejas que se concentra o maior interessse do público. A profusão destas obras levou à criação da expressão “síndroma de Stendhal” para a perturbação que muita gente culta sentiu, tal como o escritor francês que lhe dá o nome, ao visionar uma tal concentração de obras-primas, tanto em Florença como noutros grandes centros artísticos da Itália, como Roma e Veneza, para nomear apenas os mais famosos.
Este “síndroma” acabava por afectar a percepção de tantas preciosidades artísticas. O próprio Stendhal o descreve muito expressivamente em 1817, depois de ter visitado a Igreja de Santa Croce onde os frescos de Giotto aí pintados lhe causaram uma extraordinária perturbação:
"Eu caí numa espécie de êxtase, ao pensar na ideia de estar em Florença, próximo dos grandes homens cujos túmulos eu tinha visto. Absorto na contemplação da beleza sublime… Cheguei ao ponto em que uma pessoa enfrenta sensações celestiais… Tudo falava tão vividamente à minha alma… Ah, se eu tão somente pudesse esquecer. Eu senti palpitações no coração, o que em Berlim chamam  'nervos'. A vida foi sugada de mim. Eu caminhava com medo de cair.”
A partir de então, gerações de visitantes da Itália exprimiram esta perturbação que tem sido considerada psico-somática. Sou capaz de a compreender perfeitamente, depois de visitar os Uffizi e outros museus de Florença e, mais tarde, em Roma, os Museus do Vaticano. O “bombardeamento” por um tão grande número de imagens, que tanto nos impressionam e que procuramos reter e interpretar depois de as compararmos entre si, é um exercício esgotante e que acaba por se traduzir num estado misto de excitação e de cansaço. A palavra “overdose” parece-me a  mais adequada...
Logo na “sala de visitas” da Cidade do Arno, a Piazza della Signoria, como vimos anteriormente, as esculturas tomaram conta das artérias e da própria praça, umas a descoberto, como a cópia em mármore do “David” de Miguel Ângelo, a “fonte de Neptuno” de Ammanati, a estátua  equestre do Grão-duque Cosme I de Médici, de Gianbologna, e o grupo escultórico “Hércules e Caco” de Bandinelli, outras protegidas pela cobertura da Loggia dei Lanzi, como atrás foi referido, relativamente ao “Rapto das Sabinas” de Giambologna e “Perseu com a Cabeça da Medusa”de Cellini (Fig.1), ambas obras originais, além de diversas cópias cujas matrizes foram resguardadas em museus da cidade. Entre os muitos de Florença destacam-se a Galleria dell’Accademia, onde podemos admirar as esculturas de Miguel Ângelo  “David” (Fig.2), dois dos seus inacabados  “Escravos” e ainda um, também inacabado, “S. Mateus”.
No Museo dell’Opera del Duomo – Museu da Obra da Catedral – destaca-se a “Pietà”  de Miguel Ângelo que, embora menos conhecida que a da Basílica de S. Pedro em Roma, não é decerto menos expressiva, nem menos marcada pelo “pathos” que o tema da morte de Cristo exige (Fig.3).
No mesmo museu podemos admirar a “Santa Maria Madalena” de Donatello, entalhada em madeira e representando o cúmulo de toda a miséria humana e, dentro de um registo completamente diferente, os graciosos baixos-relevos de Lucca della Robbia (Fig.4) e de Donatello, destinados  ao Coro da Catedral representando os meninos cantores.
Esta pequena amostragem da grande escultura de Florença, exigiria ainda, pelo menos, uma visita à Sacristia Nova da Igreja de San Lorenzo, mausoléu edificado por Miguel Ângelo para os membros da família Médici, ao Museu de Bargello e ao Museu Arqueológico e, no que se refere à pintura, ao Palazzo Pitti. Pelo menos.
Muito sinceramente, os poucos dias que pude dedicar a Florença, divididos ainda por um périplo pela Toscana, foram insuficientes para visitar tantas maravilhas. A selecção que organizei, por muito “herética” que possa parecer pelo muito que ficou de fora, foi uma escolha pessoal, sempre a contar com um regresso, que já tarda. Assim, partilharei nestas páginas um pouco do encanto que perdurou em mim, assim como alguma perturbação dos sentidos, próxima já do síndroma de Stendhal.

A seguir, referirei a visita à Galeria degli Uffizi, ocupada por uma colecção de pintura ímpar a nível mundial, onde também a escultura clássica tem o seu lugar.




domingo, 19 de março de 2017


O "ANTIGAMENTE" DA NOSSA VIDA COLECTIVA


Apesar do eterno retorno da História, façamos tudo para evitar o regresso a essas épocas de horror económico e de depressão colectiva, de repressão, em que a direita, nas suas versões mais conhecidas (ditadura e ultraliberalismo) tanto explorou o povo português!
A primeira forma é enfrentando e denunciando as meias verdades, a meias mentiras e as falsidades absolutas de que é feito todo o discurso da direita. Aldrabões e hipócritas passou a ser o selo dessa gente que tem um único móbil: enriquecer à custa dos "pobres" e dum país que foi espremido até ao tutano.
Mas não bastam as palavras: os actos falam mais alto, por muito que tentem lançar-nos ao rosto cortinas de fumo ocultando tanto de bom que tem sido feito e atingido. Afinal, uma "geringonça" bastante oleada e eficaz, um exemplo para a Europa e para o Mundo...

quinta-feira, 16 de março de 2017


A Cidade das Flores - II
Carlos Rodarte Veloso
Publicado n’”O Templário” de 16-3-2017

Contra o longe das montanhas
cúpulas e torres recortadas
cintilam
enquanto mármore e bronze e água
brincam no azul
sobre praças e ruas


                Florença, no centro da Toscana, que corresponde maioritariamente à antiga Etrúria, é considerada muito justamente a Cidade das Artes. Na verdade os seus monumentos, muitos deles considerados património cultural da humanidade, são desde logo dominados pelo inconfundível perfil de Santa Maria del Fiore (Fig.1) , o “Duomo” – designação italiana  para as catedrais – junto à Torre de Giotto, sua torre sineira, e o Baptistério, ambos separados da catedral, como era uso em Itália.

                A sua base românico-gótica vai ser enriquecida, no século XV, com a obra-prima de Filippo Brunelleschi – o arquitecto que introduz a perspectiva nas suas construções – a sua enorme cúpula, que só viria a ser ultrapassada em dimensões pela de S. Pedro de Roma, de Miguel Ângelo Buonarroti, no século seguinte.
Além das muitas igrejas, palácios, bibliotecas, museus e jardins integrados na malha urbana da cidade, muitos deles de arquitectos ilustres como o já citado Brunelleschi, Alberti, Miguel Ângelo, Vasari e tantos outros, e evitando assim, deliberadamente, um elenco exaustivo desses locais, focarei essencialmente alguns dos mais emblemáticos de Florença:
- O “Pallazzo Vecchio” (Fig.2), sede do governo autárquico da cidade – na Piazza della Signoria – centro cívico de Florença e verdadeiro museu ao ar livre de inúmeras obras escultóricas  – uma estátua equestre de Cosme de Médici, a “Fonte de Neptuno”, o conjunto escultórico de “Hércules e Caco”, uma cópia do famosíssimo “David” de Miguel Ângelo, cujo original se encontra exposto no Museu da Academia – e  também as que se encontram protegidas pela Loggia dei Lanzi: uns, são cópias de originais expostos noutros museus da cidade. Outros, originais, são, por exemplo, o “Rapto das Sabinas” e “Perseu com a Cabeça da Medusa”.
- a “Ponte Vecchio” (Fig.3) que, além da sua função como travessia do Rio Arno, e na sequência de outras pontes que, no mesmo local, desde a época romana, foram sucessivamente construídas e destruídas, foi, desde o século XIII, ocupada por tendas, lojas de artesãos, curtidores de peles, vendedores de peixe e, finalmente, talhantes e carniceiros. Estas indústrias artesanais despejavam os respectivos dejectos no Rio Arno, com as consequências nauseabundas que podemos imaginar. A venda destas instalações pelos poderes autárquicos, no final do século XV, na sequência de uma grave crise financeira, liberalizou a ocupação da respectiva via por novas construções, muitas delas em vários andares. Em 1593, expulsão dos talhantes da Ponte Vecchio, como forma de limitar o mau cheiro insuportável aí sentido, leva a legislar no sentido de as “botteghe” – lojas – passarem a ser ocupadas apenas pelos artesãos de mais alta qualidade e prestígio, ou seja, ourives e joalheiros. Este “saneamento” conduziu ao aspecto actual da ponte, ocupada por lojas dessa actividades em ambos os lados da via pública e que corresponde a um movimento de procura maciço pelos visitantes.

-  os “Uffizi” (Fig.4) de Vasari. um dos melhores e mais ricamente recheados dos museus do mundo, iniciado por Cosme I de Médici como palácio governamental e  alterado por seu filho, Francisco I de Médici, em 1581,  para albergar a colecção de arte da família na loggia aberta que transformou em galeria. Este museu atrai multidões de estrangeiros, tornando-se, como é comum nestes movimentos de massas, o pretexto para uma simples – ou inúmeras – “selfies”, destinadas apenas à duvidosa notoriedade de provar que “eu já lá estive”, ou de vídeos, fotografias e outros meios transportáveis para os respectivos lares, onde cumprirão a sua desejada missão: bombardear familiares e amigos com resmas de imagens, nem por isso bem compreendidas, mas projectadas ao longo de chatíssimas horas de sacrifício para os felizes contemplados. Casamentos e outros eventos sociais são comuns naqueles espaços, cujo romantismo já não resiste ao aperto de multidões barulhentes, totalmente alheias à magia que – ainda – irradia daquelas pedras maravilhosas.



 

terça-feira, 14 de março de 2017


OS DOIS “CRISTOS RESSUSCITADOS” DE MIGUEL ÂNGELO
Carlos Rodarte Veloso
(Correio Transmontano, 14 de Março de 2017)


 

Não sendo um facto muito conhecido, a verdade é que o perfeccionismo de Miguel Ângelo Buonarroti o levou a “renegar” a sua obra-prima de 1514, o “Cristo Ressuscitado”, cuja face apresentava um incómodo veio escuro, defeito do bloco de mármore utilizado. Detectado o defeito, logo o abandonou deixando a discípulos seus a finalização do rosto, já que o corpo, maravilhosamente esculpido, pelo qual tinha começado a escultura, já estava terminado. A obra assim abandonada acabou por ser exposta num mosteiro próximo de Roma, o mosteiro de San Vincenzo em Bassano Romano, na sua forma original, ou seja, com a estátua totalmente desnudada segundo o ideal clássico de Miguel Ângelo. E aí decaiu no anonimato. A sua redescoberta levou a um acordo com a National Gallery de Londres para que esta obra-prima aí fique exposta nos próximos tempos.
O projecto inicial foi retomado em 1521, tendo a nova versão ficado instalada na importante Igreja de Santa Maria Sopra Minerva em Roma. Mas, com o começo da Contra-Reforma, outros tempos tinham começado para a Igreja Católica, marcados pelo puritanismo em relação à exposição dos genitais masculinos, mormente em figuras sagradas e, mais que em todas, nas representações de Cristo. Isso levou à pudica ocultação do sexo com um “véu” metálico, absolutamente inestético e que se mantém, só sendo permitida a exposição do sexo de Cristo nas representações de Jesus Menino.
Nas duas versões é evidente o paralelismo estético destas com o “David” de c. 1504, cuja nudez nunca constituiu problema para o pudor católico. Os “nus” do grande escultor foram retomados nas pinturas da Capela Sistina, aí acabando por ter um “tratamento” semelhante ao da imagem de Santa Maria Sopra Minerva, sendo-lhes pintados esvoaçantes drapeados, as “bragas”, sobre as “vergonhas”.
Foi Daniel de Volterra o artista encarregado pelo papa Pio V, em 1559, da pintura das “bragas”, acção a que foi obrigado, mas lhe valeu a popular alcunha de “braghetone”. Esta pudica aplicação não mais foi retirada, apesar das recentes campanhas de restauro da Capela Sistina. Estava de tal forma enraizada esta representação “envergonhada” que nem os novos tempos de “aggiornamento” do  Vaticano serviram para devolver as suas formas originais aos frescos de Miguel Ângelo. Felizmente resta-nos o “Cristo Ressuscitado” na sua versão de 1514. Para o admirar, teremos apenas que nos deslocar a Londres...

                          

domingo, 12 de março de 2017




A Cidade das Flores - I
Carlos Rodarte Veloso
Publicado n’”O Templário” de 9-3-2017

                Entre os destinos artísticos e culturais de todo o mundo destaca-se Florença e a região em que se situa, a Toscana. Essa cidade foi desde o século XVIII o epicentro de um movimento  de massas – em ambas as acepções do termo – captando a visita dos herdeiros das elites aristocráticas e industriais britânicas a fim de obterem uma sólida formação cultural através da viagem aos países considerados como a referência cultural da Europa, e aos seus monumentos. Não só Florença, mas também Roma, Veneza e, fora da Itália, Paris, Viena e poucas mais e, só muito, muito depois, países periféricos como a Espanha e Portugal, mesmo assim preteridos perante escolhas mais “exóticas” como a Terra Santa, o Egipto ou a Grécia…
                Só com uma sólida fortuna por detrás era possível praticar esta viagem de formação, perigosa sob muitos pontos de vista e a que foi dado o nome francês de “Grand Tour”, termo que acabou por dar origem a “Turismo”. Não ao turismo de massas actualmente praticado em todo o mundo, mas a um turismo de elites, apenas acessível aos seus representantes.
Expandia-se assim entre as classes dominantes da Grã-Bretanha e depois, do resto da Europa mais avançada economicamente, a ideia de que conhecer na prática outras geografias, outros povos e as suas maravilhas artísticas era o atributo do cavalheiro, do “gentleman”, em primeiro lugar a imagem de marca do cidadão britânico.
                Dizia o viajante português Aucourt e Padilha, nas suas Memórias  de 1746: “Não poderás negar que as jornadas foram as primeiras escolas, e os que corriam terras, os primeiros sábios”. Embora este movimento esteja centrado no início da Revolução Industrial, viajar para formação pessoal é um fenómeno já antigo, que encontra raízes na própria Antiguidade Clássica em dirigentes e escritores como Sólon ou Heródoto, os mais conhecidos e, mais tarde, entre as elites romanas.
                Viajar era, assim, um caso muito sério, uma verdadeira escola do mundo e da vida, fundamental para a preparação das elites para as altas funções que as esperavam no regresso à pátria: carreira política, diplomacia, gestão de grandes companhias e grandes negócios, administração pública ou, simplesmente o ócio dos ricos gozando dos rendimentos, mas sempre brilhando em sociedade…
                Florença, esta pequena cidade banhada pelo Arno, representa um verdadeiro milagre cultural, numa Itália mergulhada em contínuas guerras entre as cidades das várias regiões que, através de alianças muito movediças, substituiam continuamente os seus dirigentes através de golpes de estado, invasões a favor ou contra poderosos vizinhos, ficando no poder, em muitas cidades da Itália, uma classe de antigos mercenários, os “condottieri”, rapidamente nobilitados através do seu mecenato a favor de artistas, escritores, inventores e alquimistas. Douravam assim os seus recentíssimos brasões de nobreza.
                Como é sabido, este movimento mecenático enquadra-se dentro de um outro, muito mais vasto, o do Renascimento, que reabilita muitas das concepções filosóficas e artísticas da Antiguidade Clássica, em oposição àquelas que foram difundidas pela hierarquia católica desde a queda do Império Romano.
Assim assiste-se muito especialmente a um regresso aos valores culturais, ditos “pagãos”, de Gregos e Romanos – que  se tenta dificilmente conciliar com os valores do Cristianismo – ao estudo das respectivas línguas, da literatura, da filosofia e da arte, em que o próprio corpo humano, considerado como centro de todas as tentações, era agora o principal foco de toda a Estética.
A este regresso à Antiguidade e aos seus valores chamou-se Humanismo e, curiosamente, além dos livres-pensadores que advogaram esta verdadeira revolução cultural, também muito do clero católico, diversos papas e a nova burguesia urbana da Itália e da Flandres – os países e regiões mais avançadas da Europa – contribuíram para a sua difusão e valorização. Assim se assiste à definição do Homem como agente do seu próprio progresso, livre finalmente para alcançar os seus mais altos desígnios, aquilo a que se chamou Antropocentrismo – o Homem no centro do mundo, e motivo principal para a sua existência  – em oposição ao Teocentrismo  - Deus como fundamento e  centro do universo – que dominara as séculos anteriores.
Este movimento, que constitui uma ruptura com a status até então dominante, incentiva toda uma pleiade de criadores a porem o seu talento ao serviço de um novo entendimento do mundo e das artes que vai inundar, em primeiro lugar, as cidades-estados italianas, muito especialmente Florença.
O passado recente desta república era relativamente democrático, assente em governos liderados pela sua rica burguesia ligada à indústria e ao comércio, acabando por dar lugar, no século XV, a uma dinastia de banqueiros, os Médicis, que passam a exercer um poder real, paralelamente às formas tradicionais de governo autárcico que se mantém como simples imagem de marca.
E são os Médicis e algumas das mais importantes famílias suas rivais, que vão fomentar o gosto pela arte e a ciência, pela busca de manuscritos antigos e outras antiguidades, pelo  gosto pelo coleccionismo, pelo desenvolvimento da recém-nascida arte da imprensa,  juntando e alimentando nos seus “palazzos” e instituições por si criadas, jovens talentosos sedentos de conhecimento e do desenvolvimento das suas aptidões, que dão origem a uma autêntica explosão de criatividade.
Desde então e omitindo alguns aspectos mais problemáticos da história de Florença, assiste-se à renovação artística da Cidade através do surto de verdadeiros génios que aqui se formam nos ateliers de mestres famosos que rapidamente ultrapassam. Para citar apenas os mais famosos entre dezenas,  Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo Buonarroti e Rafael de Sanzio  começam as suas actividades artísticas em Florença, mas outros destinos os vão atrair no futuro, acabando por enriquecer outras cidades de Itália, especialmente Roma, numa fase mais avançada das suas vidas e do Renascimento.
Citei apenas artistas plásticos, embora o primeiro, a que dedicarei proximamente um artigo, tenha correspondido ao “homem completo” do Renascimento pelas múltiplas actividades que desenvolveu, sempre com inacreditável talento.
O brilho das obras de arte dos talentosos criadores que recheiam esta cidade privilegiada e a Toscana em que se insere, levaram a colocá-la no topo da procura por gente culta de todo o mundo – embora a sua procura actual se insira num movimento de turismo de massas, pouco exigente culturalmente – valorizando-a um garantido romantismo que deu lugar à edição de uma infinidade de livros a partir do século XIX e de filmes, muitos deles recentes.
Como exemplo cinematográfico deste gosto, apontarei três filmes que considero de referência, excelentemente realizados e servidos pelo talento de grandes actores e, especialmente, actrizes das várias gerações.
São eles “A Room with a View” (“Quarto com vista sobre a cidade”) realizado por James Ivory em 1985 e inspirado em romance de E. M. Forster; “Tea with Mussolini (“Chá com Mussolini”) realizado por Franco Zeffirelli em 1999, baseado em factos reais; e “Under the Tuscan Sun” (“Sob o sol da Toscana”) realizado por Audrey Wells em 2003, inspirado no romance autobiográfico de Frances Mayes.









quinta-feira, 9 de março de 2017

MULHER

Brincava com o barro de que é feito o homem e gerava exércitos sombrios… esperando sempre que da bruta larva brotasse a Borboleta!


segunda-feira, 6 de março de 2017

Publicado no Correio Transmontano de 24-1-2017

GRAVURAS ANIMADAS DO PALEOLÍTICO EM FOZ CÔA
Por Carlos Rodarte Veloso

Correio Transmontano adicionou 4 fotos novas.
19 h
A ideia de que os remotos artistas das cavernas teriam criado uma espécie de “desenhos animados” pintados ou gravados na rocha já não é uma novidade, porque há cerca de 20 anos que o arqueólogo francês Marc Azéma, ao estudar pinturas rupestres de animais da gruta de Chauvet (Ardèche, Sul da França) verificou que “os artistas representavam imagens animadas e não fixas [...] com sequências sucessivas e um sentido de leitura, como na banda desenhada ou no cinema dos nossos dias”.
Num osso representando em três imagens uma leoa em corrida, descoberto na gruta francesa de Lascaux, com a idade de 14 a 12 000 anos, o felídeo é representado em sequência, numa mesma direcção, sugerindo os fotogramas de um filme, assim decompondo as diversas fases do movimento.
O aprofundamento da sua pesquisa às grutas de Niaux no Ariège veio ao encontro das teses antes elaboradas por Azéma e levou a conclusões mais ainda espectaculares quando, para além de outras imagens sugerindo movimento como, por exemplo, animais com 8 patas sugerindo corrida, ou cavalos cujas cabeças e caudas “se agitam”,
foram detectados pequenos medalhões em osso, representando animais que, feitos girar em torno de um fio tendinoso, cria a ilusão de óptica de um animal em movimento rápido. Esse dispositivo, reinventado em 1825 e chamado “thaumatropo” é um directo antepassado do cinema.
Entretanto, outros exemplos rupestres foram encontrados na Cantábria, nas grutas de Altamira, mas foi nas gravuras de Foz Côa que os exemplos se multiplicaram, nos seus 17 quilómetros de vestígios repartidos por 50 núcleos de arte rupestre, na maioria datadas do Paleolítico Superior, muitas delas anteriores aos exemplos franceses indicados, como a cabra gravada na rocha 3 da Quinta da Barca, cuja cabeça está orientada em duas direcções diferentes, sugerindo o movimento da cabeça do animal.
Os exemplos abundam em Foz Côa, como com a gravura de um cavalo presente na rocha da Penascosa, “abanando a cabeça”, movimento sugerido por três posições da respectiva cabeça.
Em grande número, as gravuras de Foz Côa “em movimento”, datadas de há cerca de 18 000 anos, são um exemplo supremo da importância desta descoberta, inicialmente tão sobranceirmente ignorada, quando não vilipendiada como “fraude” pelos arqueólogos franceses, ciosos do seu velho “domínio” sobre os estudos arqueológicos.
Hoje Património da Humanidade, as gravuras de Foz Côa iniciaram um novo capítulo no estudo da Arte Pré-Histórica, ultrapassando todas as barreiras do preconceito pró-gaulês e abrindo caminho a novas interpretações, tanto quanto possível aproximadas da realidade histórica.

À BEIRA DO ABISMO
Carlos Rodarte Veloso

Publicado n’”O Templário” de 26-1-2017


                     E pronto, lá está o presidente da “America first”, pronto a esmagar todas as dificílimas melhorias que Obama introduziu no país agora dominado pelos seus bárbaros trogloditas que, esses sim, deveriam estar no lugar para onde no passado empurraram os “peles vermelhas”: em reservas desérticas, enfeitadas apenas com cactos, “cidades fantasmas” e com a construção de casinos, uma forma como outra qualquer de adoração do deus-dinheiro e a garantia de serem mantidos sob vigilância apertada.
                    Cultores intransigentes da xenofobia mais básica, do racismo, do machismo e do ódio à novidade, cantam agora nas ruas os “novos tempos” que se encaixam nas ideologias mais retrógradas, fazendo regredir mais de duzentos anos de progressos científico-tecnológicos e sociais para os “tempos heróicos” da útima fronteira, dos cowboys e, claro, do salve-se quem puder de uma população armada até aos dentes, sempre pronta a fazer “justiça” pelas próprias mãos.
                    Isto tudo no contexto de um discurso de ódio e de uma barreira das mentiras mais grosseiras, em defesa do isolacionismo mais patético, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, se faz a apologia de entendimentos com a Rússia quase czarista e se agride estupidamente outra grande potência mundial, a China. E como convencer quem quer que seja de que a destruição do “Estado islâmico” pode ser concretizada dentro do tal isolacionismo, com um simples toque da varinha mágica do ataque maciço de toda a tecnologia de ponta que os EUA ainda dominam?
                    E onde fica a cultura, os valores humanísticos, a simples compaixão neste quadro inquietante? Fica entregue ao livre arbítrio dos cada vez mais poderosos senhores do Capital, das multinacionais, dos comerciantes de armas, dos beneficiários dos “offshores”, dos intransigentes do petróleo, num momento em que tudo apontava para a substituição dos combustíveis fósseis por formas de energia renováveis e assim, para defesa da Natureza, da Ecologia e, em primeira e última análise, da Humanidade..
                    O pior é que os “valores” desta gente que tudo leva a crer ter falseado os resultados de eleições, em que nem sequer representam a maioria dos eleitores, estão já a contaminar outros contimentes, nomeadamente a nossa Europa, incentivando “copycats” situados na extrema direita do espectro político, caso de Marine Le Pen, o mais emblemático e ameaçador no contexto actual. Também não é de todo inocente a inesperada (?) agressividade de Theresa May, PM do Reino Unido, a atrelar o Brexit aos “conselhos” de Trump, confessadamente desejoso da destruição final da União Europeia...
                    Donald Trump pode estar sossegado, porque ninguém tem feito tanto mal à União Europeia como os seus estafados líderes, gente sem princípios, sem imaginação e sem inteligência, mais interessados em dominar os elos mais fracos da comunidade do que em criar um poderoso entendimento entre os seus membros, assim capazes de trilhar novos caminhos de esperança. Essa gente faz parte do problema e o “America first” bem pode planear os seus próprios muros da vergonha, negar as alterações climáticas, apoiar os colonatos judaicos na Palestina, desafiar este mundo e o outro e coçar regaladamente a barriga na esperança de ver cair em pedaços uma civilização milenar a que não merece pertencer.
Imagens: 1. “Gótico americano” de Grant Wood; 2. Apoiante de Trump, armado.


 


             
PERSPECTIVA E “TROMPE L’OEIL” 
Carlos Rodarte Veloso 
(Publicado no Correio Transmontano, 28-2-2017) 


As artes visuais de há muito se notabilizaram pela imitação da natureza, o que conduziu à criação de estilos artísticos como o Realismo e o Naturalismo e, mais tarde, o Impressionismo e outras correntes estéticas que procuravam uma máxima aproximação à realidade através de múltiplos artifícios.
Não é uma novidade recente. Pelo contrário, as suas raízes estão mergulhadas na época do nascimento da arte, a Pré-História, cujos artistas pintavam e gravavam na rocha verdadeiros documentários das suas caçadas ou do que quer que seja relativo à fauna então existente. Essa procura de realismo levou-os a utilizar autênticas trucagens que só seriam recuperadas já no século XX, na banda desenhada e no cinema de desenhos animados, por exemplo com a multiplicação das patas dos animais em corrida ou representações sobrepostas simulando, por exemplo, movimentos simples da cabeça.
No entanto essa busca de fidelidade ao testemunho visual atingiu o seu máximo com a tentativa de representar a paisagem em termos de profundidade, em que os objectos ou outros elementos mais distantes do observador eram representados numa escala cada vez mais reduzida, perdendo-se na distância. As próprias cores utilizadas procuravam dar a medida dessa distância, simulando as impressões observadas pelo artista.
Esta tentativa de representar num suporte bidimensional plano uma representação tridimensional, vai conduzir à invenção da perspectiva, já observada ainda de uma forma rudimentar e empírica, em algumas pinturas mais tardias em vasos gregos áticos e, já com o possível recurso à geometria, nas famosas representações de jardins ou de edifícios nas paredes pintadas de “villae” romanas.
Esta novidade revolucionária proporcionava aos seus proprietários o recurso àquilo a que hoje chamamos “trompe l’oeill”, termo francês para este tipo de ilusão de óptica que vai converter paredes e tectos em espaços ilimitados, abertos a uma realidade que hoje chamaríamos virtual.
Depois do interregno medieval em que, por decisão ideológica da igreja católica, se perde grande parte das conquistas greco-romanas no domínio do realismo pictórico, o estudo geométrico rigoroso, portanto científico desta aparente transformação da realidade foi levado ao seu apogeu no Renascimento italiano, através da arquitectura de famosos mestres como Brunelleschi e Alberti e de pintores como Donatello, Piero della Francesca e seus seguidores, cujas conquistas atingiriam o seu clímax no Barroco e Rococó, já nos séculos XVII e XVIII.
Como base desta verdadeira técnica, encontra-se o estabelecimento de um “ponto de fuga” no qual convergiam todas as “linhas de fuga”, assim privilegiando o ponto fulcral da obra assim concebida.
Curiosamente é precisamente a igreja católica do Renascimento e períodos posteriores que vai proporcionar um ímpeto decisivo a este ressurgimento da arte da ilusão, agora com finalidades catequéticas e propagandísticas. Igrejas, palácios, bibliotecas, muros de jardins são agora decorados na sua área total com composições paisagísticas ou temas simbólicos e/ou miraculosos que rompem todas as dimensões e atingem uma mestria inigualável. Também os suportes dessas obras de arte abrangem novos materiais, como o estuque, a talha e o azulejo, este aplicado em Portugal no interior como no exterior de edifícios.

 LEGENDAS DAS FIGURAS:
1. “Rapto de Sarpédon”, pintura grega sobre cerâmica ática
2. “Jardim”, pintura a fresco de villa de Prima Porta, Roma
3. Brunelleschi, interior da igreja de S. Lourenço, Florença
4. Piero della Francesca, “Flagelação de Cristo”
5. Andrea del Pozzo, tecto da igreja de Santo Inácio, Roma
6. António Simões Ribeiro, tecto da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra
7. Irmãos Zimmermann, tecto da igreja dos Peregrinos in der Wries
8. “Figuras de convite”, painel de azulejos, Palácio do Arcebispo, Stº Antão do Tojal, Loures