PIGMALIÃO E GALATEIA, UM MITO INTEMPORAL
Carlos Rodarte Veloso
Publicado no Correio Transmontano, 27-3-2017
Quando, em 1890, o artista Jean-Léon Gérome dá corpo ao tema de Pigmalião, o artista que se apaixona pela obra que ele próprio criou, retoma assim um dos mitos mais enraizados no inconsciente colectivo do grupo masculino da humanidade. As suas duas pinturas, Pigmalião e Galateia (Fig. 1 e 2), e também a escultura com o mesmo tema que produziu, representam o momento em que a pedra fria da estátua, ao ser enlaçada pelo escultor, ganha a cor e a plasticidade da matéria viva, correspondendo ao amplexo e ao beijo apaixonado do artista. Todo o ambiente que rodeia a cena está imbuído de referências greco-romanas, desde as máscaras teatrais da Tragédia e da Comédia ao Cupido — Eros — que da parede parece alvejar o casal com as suas flechas, do escudo decorado com a Górgona à pintura e modelos escultóricos neoclássicos, bem adequados ao gosto académico de Gérome.
Há que acentuar que, sendo as suas obras pintadas depois dos sessenta anos, é uma das mais sensuais e uma das mais “românticas” produzidas por este académico e conservador empedernido, nitidamente obcecado pelo tema da metamorfose induzida pela vontade de um criador e pela força do Amor.
Há, no entanto, algumas diferenças importantes entre o quadro de Gérome e o mito clássico em que se baseia. Este, com versões devidas a Apolodoro, Ovídio e Arnóbio, gira em torno da história do rei de Chipre que, apaixonado por Afrodite, deusa do Amor e da Beleza, tenta recriá-la numa estátua de marfim. Ao concluí-la, perfeita como o modelo que idealizara, é imenso o seu sofrimento, perante a frieza da matéria inerte. É então que Afrodite, sensibilizada pelo amor assim manifestado, dá vida à escultura, Galateia, que viria a dar dois filhos a Pigmalião. Toda a história remete para a força criadora do Amor, embora gravemente inquinada pelo carácter fortemente sexista da sociedade vigente.
O mito de Pigmalião atravessou os séculos, representado em todas as épocas e, além de Gérome, foi retomado por outros artistas, nomeadamente por Burne-Jones com a sucessão de quadros Pigmalião e a Imagem (Fig. 3), e por René Magritte, com a sua pintura A Tentativa do Impossível, de 1928, não escapando à veia satírica de Daumier com o seu Pigmalião. O tema é igualmente retomado nas artes cénicas, num sentido mais simbólico, com a construção de uma nova mulher, mais bela, mais educada e em tudo perfeita, a partir da rude realidade de uma rapariga pobre e analfabeta. Assim acontece em Pigmalião, peça publicada em 1912 por Bernard Shaw (Fig.4) e em obras nela baseadas, como o popularíssimo filme musical My Fair Lady, de George Cukor, estreado em 1964 (Fig.5) e premiado com uma verdadeira avalancha de “Óscares”. Aqui, vemos a filosofia machista do Pigmalião moderno confrontada pela sua criação, a nova Galateia, mulher no muito relativo caminho da emancipação que se trilhava no período em que a peça foi escrita. Há no entanto a considerar que o original de Bernard Shaw exclui o “happy end” hollywoodesco do casamento de Elisa com o seu tutor, antes a deixando, terminada a sua “educação”, numa situação muito fragilizada, trágica mesmo, excluida do mundo laboral em que nascera – que do mesmo modo a exclui – mas também à margem da elite a que, teoricamente, julgava ter acedido.
A extraordinária popularidade deste tema, assente na metamorfose de um ser humano por intermédio de outro, mais preparado — leia-se: dominante —, está indissociavelmente ligado ao próprio tema geral da educação e das relações entre os sexos no período anterior à Primeira Guerra Mundial. Não é por acaso que vemos surgir, ulteriormente, no cinema e na literatura, atitudes de inversão destes papéis, em que é a protagonista a moldar o seu companheiro segundo os novos ideais socio-culturais… Consequência dos novos tempos, mas não aplicável ainda – longe disso! – a todas as sociedades nossas contemporâneas.