quinta-feira, 23 de março de 2017


A Cidade das Flores - III
Carlos Rodarte Veloso
Publicado n’”O Templário” de 30-3-2017 


  Sendo a arte monumental de Florença de uma riqueza tal, é, no entanto, nas obras-primas da escultura e da pintura expostas nas suas praças, museus e igrejas que se concentra o maior interessse do público. A profusão destas obras levou à criação da expressão “síndroma de Stendhal” para a perturbação que muita gente culta sentiu, tal como o escritor francês que lhe dá o nome, ao visionar uma tal concentração de obras-primas, tanto em Florença como noutros grandes centros artísticos da Itália, como Roma e Veneza, para nomear apenas os mais famosos.
Este “síndroma” acabava por afectar a percepção de tantas preciosidades artísticas. O próprio Stendhal o descreve muito expressivamente em 1817, depois de ter visitado a Igreja de Santa Croce onde os frescos de Giotto aí pintados lhe causaram uma extraordinária perturbação:
"Eu caí numa espécie de êxtase, ao pensar na ideia de estar em Florença, próximo dos grandes homens cujos túmulos eu tinha visto. Absorto na contemplação da beleza sublime… Cheguei ao ponto em que uma pessoa enfrenta sensações celestiais… Tudo falava tão vividamente à minha alma… Ah, se eu tão somente pudesse esquecer. Eu senti palpitações no coração, o que em Berlim chamam  'nervos'. A vida foi sugada de mim. Eu caminhava com medo de cair.”
A partir de então, gerações de visitantes da Itália exprimiram esta perturbação que tem sido considerada psico-somática. Sou capaz de a compreender perfeitamente, depois de visitar os Uffizi e outros museus de Florença e, mais tarde, em Roma, os Museus do Vaticano. O “bombardeamento” por um tão grande número de imagens, que tanto nos impressionam e que procuramos reter e interpretar depois de as compararmos entre si, é um exercício esgotante e que acaba por se traduzir num estado misto de excitação e de cansaço. A palavra “overdose” parece-me a  mais adequada...
Logo na “sala de visitas” da Cidade do Arno, a Piazza della Signoria, como vimos anteriormente, as esculturas tomaram conta das artérias e da própria praça, umas a descoberto, como a cópia em mármore do “David” de Miguel Ângelo, a “fonte de Neptuno” de Ammanati, a estátua  equestre do Grão-duque Cosme I de Médici, de Gianbologna, e o grupo escultórico “Hércules e Caco” de Bandinelli, outras protegidas pela cobertura da Loggia dei Lanzi, como atrás foi referido, relativamente ao “Rapto das Sabinas” de Giambologna e “Perseu com a Cabeça da Medusa”de Cellini (Fig.1), ambas obras originais, além de diversas cópias cujas matrizes foram resguardadas em museus da cidade. Entre os muitos de Florença destacam-se a Galleria dell’Accademia, onde podemos admirar as esculturas de Miguel Ângelo  “David” (Fig.2), dois dos seus inacabados  “Escravos” e ainda um, também inacabado, “S. Mateus”.
No Museo dell’Opera del Duomo – Museu da Obra da Catedral – destaca-se a “Pietà”  de Miguel Ângelo que, embora menos conhecida que a da Basílica de S. Pedro em Roma, não é decerto menos expressiva, nem menos marcada pelo “pathos” que o tema da morte de Cristo exige (Fig.3).
No mesmo museu podemos admirar a “Santa Maria Madalena” de Donatello, entalhada em madeira e representando o cúmulo de toda a miséria humana e, dentro de um registo completamente diferente, os graciosos baixos-relevos de Lucca della Robbia (Fig.4) e de Donatello, destinados  ao Coro da Catedral representando os meninos cantores.
Esta pequena amostragem da grande escultura de Florença, exigiria ainda, pelo menos, uma visita à Sacristia Nova da Igreja de San Lorenzo, mausoléu edificado por Miguel Ângelo para os membros da família Médici, ao Museu de Bargello e ao Museu Arqueológico e, no que se refere à pintura, ao Palazzo Pitti. Pelo menos.
Muito sinceramente, os poucos dias que pude dedicar a Florença, divididos ainda por um périplo pela Toscana, foram insuficientes para visitar tantas maravilhas. A selecção que organizei, por muito “herética” que possa parecer pelo muito que ficou de fora, foi uma escolha pessoal, sempre a contar com um regresso, que já tarda. Assim, partilharei nestas páginas um pouco do encanto que perdurou em mim, assim como alguma perturbação dos sentidos, próxima já do síndroma de Stendhal.

A seguir, referirei a visita à Galeria degli Uffizi, ocupada por uma colecção de pintura ímpar a nível mundial, onde também a escultura clássica tem o seu lugar.




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