terça-feira, 14 de março de 2017


OS DOIS “CRISTOS RESSUSCITADOS” DE MIGUEL ÂNGELO
Carlos Rodarte Veloso
(Correio Transmontano, 14 de Março de 2017)


 

Não sendo um facto muito conhecido, a verdade é que o perfeccionismo de Miguel Ângelo Buonarroti o levou a “renegar” a sua obra-prima de 1514, o “Cristo Ressuscitado”, cuja face apresentava um incómodo veio escuro, defeito do bloco de mármore utilizado. Detectado o defeito, logo o abandonou deixando a discípulos seus a finalização do rosto, já que o corpo, maravilhosamente esculpido, pelo qual tinha começado a escultura, já estava terminado. A obra assim abandonada acabou por ser exposta num mosteiro próximo de Roma, o mosteiro de San Vincenzo em Bassano Romano, na sua forma original, ou seja, com a estátua totalmente desnudada segundo o ideal clássico de Miguel Ângelo. E aí decaiu no anonimato. A sua redescoberta levou a um acordo com a National Gallery de Londres para que esta obra-prima aí fique exposta nos próximos tempos.
O projecto inicial foi retomado em 1521, tendo a nova versão ficado instalada na importante Igreja de Santa Maria Sopra Minerva em Roma. Mas, com o começo da Contra-Reforma, outros tempos tinham começado para a Igreja Católica, marcados pelo puritanismo em relação à exposição dos genitais masculinos, mormente em figuras sagradas e, mais que em todas, nas representações de Cristo. Isso levou à pudica ocultação do sexo com um “véu” metálico, absolutamente inestético e que se mantém, só sendo permitida a exposição do sexo de Cristo nas representações de Jesus Menino.
Nas duas versões é evidente o paralelismo estético destas com o “David” de c. 1504, cuja nudez nunca constituiu problema para o pudor católico. Os “nus” do grande escultor foram retomados nas pinturas da Capela Sistina, aí acabando por ter um “tratamento” semelhante ao da imagem de Santa Maria Sopra Minerva, sendo-lhes pintados esvoaçantes drapeados, as “bragas”, sobre as “vergonhas”.
Foi Daniel de Volterra o artista encarregado pelo papa Pio V, em 1559, da pintura das “bragas”, acção a que foi obrigado, mas lhe valeu a popular alcunha de “braghetone”. Esta pudica aplicação não mais foi retirada, apesar das recentes campanhas de restauro da Capela Sistina. Estava de tal forma enraizada esta representação “envergonhada” que nem os novos tempos de “aggiornamento” do  Vaticano serviram para devolver as suas formas originais aos frescos de Miguel Ângelo. Felizmente resta-nos o “Cristo Ressuscitado” na sua versão de 1514. Para o admirar, teremos apenas que nos deslocar a Londres...

                          

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