domingo, 12 de março de 2017




A Cidade das Flores - I
Carlos Rodarte Veloso
Publicado n’”O Templário” de 9-3-2017

                Entre os destinos artísticos e culturais de todo o mundo destaca-se Florença e a região em que se situa, a Toscana. Essa cidade foi desde o século XVIII o epicentro de um movimento  de massas – em ambas as acepções do termo – captando a visita dos herdeiros das elites aristocráticas e industriais britânicas a fim de obterem uma sólida formação cultural através da viagem aos países considerados como a referência cultural da Europa, e aos seus monumentos. Não só Florença, mas também Roma, Veneza e, fora da Itália, Paris, Viena e poucas mais e, só muito, muito depois, países periféricos como a Espanha e Portugal, mesmo assim preteridos perante escolhas mais “exóticas” como a Terra Santa, o Egipto ou a Grécia…
                Só com uma sólida fortuna por detrás era possível praticar esta viagem de formação, perigosa sob muitos pontos de vista e a que foi dado o nome francês de “Grand Tour”, termo que acabou por dar origem a “Turismo”. Não ao turismo de massas actualmente praticado em todo o mundo, mas a um turismo de elites, apenas acessível aos seus representantes.
Expandia-se assim entre as classes dominantes da Grã-Bretanha e depois, do resto da Europa mais avançada economicamente, a ideia de que conhecer na prática outras geografias, outros povos e as suas maravilhas artísticas era o atributo do cavalheiro, do “gentleman”, em primeiro lugar a imagem de marca do cidadão britânico.
                Dizia o viajante português Aucourt e Padilha, nas suas Memórias  de 1746: “Não poderás negar que as jornadas foram as primeiras escolas, e os que corriam terras, os primeiros sábios”. Embora este movimento esteja centrado no início da Revolução Industrial, viajar para formação pessoal é um fenómeno já antigo, que encontra raízes na própria Antiguidade Clássica em dirigentes e escritores como Sólon ou Heródoto, os mais conhecidos e, mais tarde, entre as elites romanas.
                Viajar era, assim, um caso muito sério, uma verdadeira escola do mundo e da vida, fundamental para a preparação das elites para as altas funções que as esperavam no regresso à pátria: carreira política, diplomacia, gestão de grandes companhias e grandes negócios, administração pública ou, simplesmente o ócio dos ricos gozando dos rendimentos, mas sempre brilhando em sociedade…
                Florença, esta pequena cidade banhada pelo Arno, representa um verdadeiro milagre cultural, numa Itália mergulhada em contínuas guerras entre as cidades das várias regiões que, através de alianças muito movediças, substituiam continuamente os seus dirigentes através de golpes de estado, invasões a favor ou contra poderosos vizinhos, ficando no poder, em muitas cidades da Itália, uma classe de antigos mercenários, os “condottieri”, rapidamente nobilitados através do seu mecenato a favor de artistas, escritores, inventores e alquimistas. Douravam assim os seus recentíssimos brasões de nobreza.
                Como é sabido, este movimento mecenático enquadra-se dentro de um outro, muito mais vasto, o do Renascimento, que reabilita muitas das concepções filosóficas e artísticas da Antiguidade Clássica, em oposição àquelas que foram difundidas pela hierarquia católica desde a queda do Império Romano.
Assim assiste-se muito especialmente a um regresso aos valores culturais, ditos “pagãos”, de Gregos e Romanos – que  se tenta dificilmente conciliar com os valores do Cristianismo – ao estudo das respectivas línguas, da literatura, da filosofia e da arte, em que o próprio corpo humano, considerado como centro de todas as tentações, era agora o principal foco de toda a Estética.
A este regresso à Antiguidade e aos seus valores chamou-se Humanismo e, curiosamente, além dos livres-pensadores que advogaram esta verdadeira revolução cultural, também muito do clero católico, diversos papas e a nova burguesia urbana da Itália e da Flandres – os países e regiões mais avançadas da Europa – contribuíram para a sua difusão e valorização. Assim se assiste à definição do Homem como agente do seu próprio progresso, livre finalmente para alcançar os seus mais altos desígnios, aquilo a que se chamou Antropocentrismo – o Homem no centro do mundo, e motivo principal para a sua existência  – em oposição ao Teocentrismo  - Deus como fundamento e  centro do universo – que dominara as séculos anteriores.
Este movimento, que constitui uma ruptura com a status até então dominante, incentiva toda uma pleiade de criadores a porem o seu talento ao serviço de um novo entendimento do mundo e das artes que vai inundar, em primeiro lugar, as cidades-estados italianas, muito especialmente Florença.
O passado recente desta república era relativamente democrático, assente em governos liderados pela sua rica burguesia ligada à indústria e ao comércio, acabando por dar lugar, no século XV, a uma dinastia de banqueiros, os Médicis, que passam a exercer um poder real, paralelamente às formas tradicionais de governo autárcico que se mantém como simples imagem de marca.
E são os Médicis e algumas das mais importantes famílias suas rivais, que vão fomentar o gosto pela arte e a ciência, pela busca de manuscritos antigos e outras antiguidades, pelo  gosto pelo coleccionismo, pelo desenvolvimento da recém-nascida arte da imprensa,  juntando e alimentando nos seus “palazzos” e instituições por si criadas, jovens talentosos sedentos de conhecimento e do desenvolvimento das suas aptidões, que dão origem a uma autêntica explosão de criatividade.
Desde então e omitindo alguns aspectos mais problemáticos da história de Florença, assiste-se à renovação artística da Cidade através do surto de verdadeiros génios que aqui se formam nos ateliers de mestres famosos que rapidamente ultrapassam. Para citar apenas os mais famosos entre dezenas,  Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo Buonarroti e Rafael de Sanzio  começam as suas actividades artísticas em Florença, mas outros destinos os vão atrair no futuro, acabando por enriquecer outras cidades de Itália, especialmente Roma, numa fase mais avançada das suas vidas e do Renascimento.
Citei apenas artistas plásticos, embora o primeiro, a que dedicarei proximamente um artigo, tenha correspondido ao “homem completo” do Renascimento pelas múltiplas actividades que desenvolveu, sempre com inacreditável talento.
O brilho das obras de arte dos talentosos criadores que recheiam esta cidade privilegiada e a Toscana em que se insere, levaram a colocá-la no topo da procura por gente culta de todo o mundo – embora a sua procura actual se insira num movimento de turismo de massas, pouco exigente culturalmente – valorizando-a um garantido romantismo que deu lugar à edição de uma infinidade de livros a partir do século XIX e de filmes, muitos deles recentes.
Como exemplo cinematográfico deste gosto, apontarei três filmes que considero de referência, excelentemente realizados e servidos pelo talento de grandes actores e, especialmente, actrizes das várias gerações.
São eles “A Room with a View” (“Quarto com vista sobre a cidade”) realizado por James Ivory em 1985 e inspirado em romance de E. M. Forster; “Tea with Mussolini (“Chá com Mussolini”) realizado por Franco Zeffirelli em 1999, baseado em factos reais; e “Under the Tuscan Sun” (“Sob o sol da Toscana”) realizado por Audrey Wells em 2003, inspirado no romance autobiográfico de Frances Mayes.









Sem comentários:

Enviar um comentário