ARTE E UTILIDADE
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 2 de Novembro de 2017
"Folha de loureiro" paleolítica |
Poderão as ideias de Arte e utilidade ser associadas sem que a nossa consciência da sublimidade dos valores estéticos não se sinta vítima de uma autêntica heresia? É que a Arte atingiu um estatuto em muito superior à "vulgaridade" da utilidade.
No entanto tudo leva a crer que nos primeiros tempos da Arte,
isto é, na Pré-História, todos os artefactos eram fabricados com uma finalidade
essencialmente útil. O interesse material na produção de objectos úteis
preponderava assim sobre a ideia “desinteressada” da produção artística.
Isso implicava a noção de um conjunto de práticas
desenvolvidas com vista a ultrapassar os perigos de uma natureza hostil e
incompreensível que punha em causa a sobrevivência daquela humanidade primitiva.
Para isso foram desenvolvidas duas actividades destinadas a
transformar, por vias diametralmente opostas, esses perigos e angústias: a
Técnica, forma racional de superar as dificuldades materiais, e a Magia, a
prática de rituais puramente irracionais para dominar ou, pelo menos,
pacificar, as perigosas forças da Natureza.
Ambas as abordagens tiveram um extraordinário
desenvolvimento, a primeira dando origem à Ciência, a segunda à Religião.
Mesmo as belíssimas gravuras e pinturas rupestres e as
estatuetas pré-históricas que chegaram aos nossos dias podem ser englobadas na
ideia de utilidade, na medida em que tudo leva a crer que teriam finalidades
úteis à sobrevivência dos grupos humanos que as produziram.
Por um lado, a fabricação de utensílios letais, lâminas e
pontas de sílex, de osso ou de outros materiais resistentes, extremamente afiados,
destinadas à caça e à transformação dos produtos resultantes dessa actividade:
raspadores, furadores e agulhas para o tratamento das peles dela resultantes,
ferramentas que se vão diversificar e aplicar a novas actividades económicas,
surgidas em épocas posteriores.
Por outro lado, os artefactos esculpidos ou pintados,
representando animais de caça e mulheres grávidas, as famosas “vénus” paleolíticas.
A sua finalidade estaria possivelmente associada à magia, quanto mais não seja à
magia “simpática” destinada a obter, no caso da representação de animais
feridos por pontas de flecha, o futuro êxito da caçada dos mesmos. No caso das
“vénus”, uma protecção à fertilidade da tribo, condição essencial à sua
sobrevivência.
Por isso, Raymond Bayer, no seu livro “História da Estética”,
insiste na ideia de que a Arte, nos seus primórdios, não é desinteressada, não
existindo assim “uma Arte pela Arte”, conceito relativamente moderno e não universalmente
reconhecido por Artistas e Críticos.
Segundo o mesmo historiador de Arte, “A criação
consiste em modificações intencionais
que o espírito humano imprime em objectos da natureza”, o que se pode aplicar tanto ao fabrico de
armas, como de estátuas ou de magníficos edifícios e, até, às extraordinárias
“capelas de ossos” barrocas, de que existem várias em Portugal, tendo por
matéria-prima ossadas humanas.
“Além disso” – e citando ainda Bayer – “se olharmos um pouco
mais de perto os instrumentos
pré-históricos e verificarmos que eles se mostram a cada momento
mais apropriados ao seu objectivo, compreendemos a satisfação que deve ter sentido o homem
quando conseguiu fazer um utensílio corresponder ao seu fim.”
Este raciocínio constitui, quanto
a mim, a ponte existente entre o utilitarismo dos primórdios da Arte e o
nascimento da satisfação, do gozo estético que passou a ser indissociável da
produção artística.
No entanto, os dois povos mais
representativos da Antiguidade Clássicas, os Gregos e os Romanos, defendiam
concepções totalmente opostas sobre a finalidade da Arte: diziam os primeiros
que “tudo o que é útil deve ser belo”, enquanto os segundos argumentavam que
“tudo o que é belo deve ser útil”.
Esta oposição “militante” entre o
Idealismo e o Utilitarismo continua a caracterizar as atitudes dominantes
perante a Arte e a Sociedade. Sempre opostas, sempre complementares.
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