quinta-feira, 27 de dezembro de 2018



O ETERNO NATAL

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 27 de Dezembro de 2018

Há dez anos exactamente, publiquei no Cidade de Tomar um artigo intitulado “Um Natal no Século XXI”, já eclipsadas então, de todo, as esperanças que os novos século e milénio prometiam à Humanidade.
A guerra e o terrorismo marcavam de novo, mais impiedosamente do que antes, o desencanto que sucedera à tão esperançosa queda do “Muro da Vergonha”, não podendo sequer imaginar-se o próximo levantamento de outros muros, não menos vergonhosos, um na terra dita “Santa” e outro, agora, na fronteira da outra Terra Prometida, a fabulosa “América”, abusivamente tomada a parte pelo todo.
Isto leva-nos, a talhe de foice, à farsa grotesca do actual inquilino da Casa Branca, ao paralisar o Estado que representa e diz defender, como represália para a recusa dos Democratas em autorizar as derradeiras despesas com a construção do referido Muro, que só poderei classificar como “do Ódio”. Uma birra com o seu quê de infantil mas com consequências inevitavelmente trágicas.
Entretanto Bolsonaro, no “Cone Sul” da América, e novos candidatos a ditadores, por toda a Europa, destilam mais e mais ódio, brincando irresponsavelmente com o povo dos países que lhes coube governar enquanto as Democracias sobreviventes resistem dificilmente ao ataque de populismos que já se revêm nas ruas, trajados de amarelo ou com os símbolos de um passado sinistro, de “noites de cristal”, campos de concentração, fornos crematórios…
No entanto, o Natal mantém ainda a imagem onírica de um Tempo do Nunca, disfarçando com os cenários diáfanos que todos os anos constrói, uma realidade cada vez mais nua e crua. Cada vez mais feia.
            E isso no aniversário fictício de um Menino que não nasceu decerto em 25 de Dezembro, nem sequer no ano 1 da nossa era, e que morreu e ressuscitou aos 33 anos, para nos salvar. A fé terá aqui a palavra definitiva, porque ninguém se pode sentir salvo apenas por causa de um exemplo de auto-sacrifício levado ao extremo, de um indivíduo cuja vida e acções são testemunhadas apenas por uns tantos Evangelhos, entre canónicos e apócrifos, na maior parte contraditórios entre si.
            E é precisamente nesta imprecisão histórica que reside o encanto poético de um nascimento cercado de profecia e sortilégio, numa terra pobre dominada por estrangeiros, a mesma terra onde correram rios de sangue e não o leite e o mel da profecia veterotestamentária… a mesma terra que agora o “Povo Eleito” veda aos seus conterrâneos.

Gravura: “O almoço do trolha”, pintura de

Júlio Pomar, um Presépio do século XX


            Não foi o Menino, nem o Homem a que deu lugar, que construiu o poder avassalador, que construiu uma civilização que, gradualmente, ocupou o mundo inteiro. Foram os que, mansa, melifluamente, se apoderaram do seu legado de bondade e amor, e o converteram em força. Numa grande força que tão bem soube forçar os espíritos e os corpos. Assim pôde construir um mundo à medida dos seus interesses, sempre em nome dele... Em nome Dele, porque nem a letra minúscula permitiram à sua humildade!
            Passaram dois mil e tal anos sobre essa noite mágica nascida nas mentes daqueles que um dia se chamaram cristãos, daqueles que tantas vezes renegaram essa fraternidade e se massacraram mutuamente. E mesmo cada vez mais distantes da fé original, repetem os gestos sacramentais, as tradições populares e algumas  importadas, os pastores, o rebanho, a sagrada família e o musgo e a areia com que vão cobrir os caminhos sinuosos do Presépio, como Francisco de Assis e os seus Irmãos, irmãos também dos animais e do vento, do sol e da chuva... irmãos do papa Francisco, frágil esperança dessa Igreja de Cristo, que nunca existiu. E a Noite, a luminosa, estrelada Noite, contemplará, uma vez mais, esse símbolo de paz, justiça e fraternidade.





terça-feira, 25 de dezembro de 2018



O NATAL EM DOZE OBRAS-PRIMAS DA ARTE EUROPEIA - SELECÇÃO DE 
CARLOS RODARTE VELOSO 

NATAL DE 2018

Com os votos de um feliz Natal e um Ano Novo cheio de alegrias!

Vitral da Catedral de Chartres, séc. XIII

Gentile da Fabriano

Masaccio

Leonardo da Vinci

Vasco Fernandes, o Grão Vasco

Giorgione

Josefa de Óbidos

Machado de Castro

Júlio Pomar

Chagall

Paula Rêgo

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018



UMA MINORIA EM BICOS DOS PÉS

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 20 de Dezembro de 2018

À margem de um país que tem conseguido resistir à crise económica e superar o estado de austeridade que lhe foi imposto de dentro, a partir da triste coligação do PSD com o CDS, à margem também da muito expressiva adesão que o actual governo socialista tem publicamente recebido de todas as consultas da opinião pública, grupos de gente mal identificada e soprada pelas “redes sociais” resolvem convocar uma manifestação destinada a “parar Portugal” e a lutar contra impostos, carestia dos combustíveis e todas as medidas fiscais que afligem a população…
É humano e completamente justo tentar melhorar a vida material e moral de uma nação, mas convém partir de pressupostos igualmente justos e morais e não de critérios de imitação do que se vê fazer noutros países, francamente mais prósperos e que não enfrentam, como nós, o desafio de uma difícil recuperação.
Sendo assim, é puramente demagógico equiparar impostos destinados a corrigir situações de injustiça que vêm muito de trás e cujos culpados somos todos nós, sem excepção, com a relativa carestia que atinge países como a França ou a Bélgica, onde os “gilets jaunes” bloqueiam as ruas exigindo uma prosperidade que cada vez mais diminui entre as classes desfavorecidas.
A onda de reivindicações apoiadas em greves, na maioria perfeitamente justas, que têm varrido Portugal ultimamente, correspondem à impaciência na recuperação do poder de compra da população anterior à crise económica que, como sabemos, não foi apenas nacional, mas assumiu uma expressão global, mas também a algum jogo politico com que os movimentos de Esquerda mais radical tentam demarcar-se do PS, a pensar nas próximas eleições, assim procurando evitar uma maioria absoluta ao mesmo partido…
Esse raciocínio não engloba, como afirmei na passada semana, a greve do juízes, e muito menos, a dos enfermeiros, a que poderei agora juntar as atitudes anti-Protecção Civil de várias corporações de bombeiros manipuladas por Marta Soares, personagem cujo oportunismo politico bem se tem afirmado desde os trágicos incêndios do ano passado e cuja colagem à Direita é evidente.
Aproveitar essa impaciência e comparar situações completamente díspares como o são as da França e Portugal, é fazer o jogo de forças obscuras internacionais que pretendem atingir Portugal, como o fizeram com a União Europeia, através do crescimento de movimentos populistas e proto-fascistas que, como temos visto, vão gradualmente conquistando os diversos governos europeus e, assim, enfraquecendo-os face às grandes potências que controlam o mundo.
A manifestação marcada para o dia 21 de Dezembro para “Parar Portugal” revela, na linguagem como nos objectivos, demasiados indícios favoráveis à destruição do actual governo, para que possamos considerá-la “pacífica” e, muito menos, “isenta” e “apolitica”… Por isso, é inconcebível como muita gente de Esquerda se deixa embalar neste “canto da sereia” da “revolta pela revolta”, entusiasmando-se até, como se estivéssemos perante um movimento revolucionário semelhante ao Maio de 1968!
As palavras de ordem da dita manifestação – com base em notícias falsas relativamente ao governo e órgãos de soberania, e indesmentíveis indícios de salazarismo – parecem ressuscitar o movimento que, há 44 anos, em 28 de Setembro de 1974, mobilizou as forças fascistas que meses antes tinham sido derrotadas pelo Movimento das Forças Armadas, aquilo a que chamaram a “maioria silenciosa”, que pretendia aumentar drasticamente os poderes do Presidente da República, António de Spínola e, assim, fazer regredir grande parte das conquistas da Revolução para a época do “Estado Novo”. No entanto, o dito movimento também se afirmava isento, apartidário e apoiante do Movimento das Forças Armadas!

 

Fig. 1 – Cartaz apelando à “Maioria Silenciosa” em 28 de Setembro de 1974.

Fig. 2 – Cartaz comemorando a derrota da “Maioria Silenciosa”, um ano depois.


A derrota esmagadora  inflingida pelas massas populares a esta pseudo-maioria pouco silenciosa, deu um novo impulso ao Movimento das Forças Armadas, radicalizando-o e conduzindo o país ao chamado PREC. Os tempos que vivemos são bem outros, mas bom seria que se aprendesse com as lições do passado…



quinta-feira, 13 de dezembro de 2018



HIC ET NUNC

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 13 Dezembro de 2018

São cada vez mais confusos os tempos que vivemos.
Enquanto uma feliz e inesperada conjunção de esforços criou em Portugal uma união política que colocou no poder um partido de Esquerda, apoiado – mesmo com algumas reservas – por outras forças de Esquerda, aliás mais radicais, mas que souberam negociar essas reservas em prol de um bem maior, esta solução democrática, original no nosso país mas perfeitamente corrente em diversos parceiros europeus, foi desde o início atacada pela Direita, que mimoseou esta solução com o nome de “Geringonça”.
Terminado o terceiro ano do mandato, recuperado um número considerável dos direitos que o anterior governo de Direita tinha aniquilado e perante uma recuperação económica verdadeiramente notável e reconhecida pelos nossos pares da União Europeia, asim como por outros países amigos, logo se instala a ideia de que é o momento de partir para a correcção total dos abusos desse periodo negro da nossa História recente, exigindo-se “hic et nunc” (“aqui e agora”) a recuperação de TODOS os direitos coartados às classes trabalhadoras, tanto em termos de condições de trabalho, como de vencimentos.
Revivendo um pouco os longínquos tempos do PREC, eis que todas as forças produtivas se levantam agora em pé de guerra, exigindo de imediato aquilo que, nem nos tempos do governo de Passos Coelho era reivindicado.
Essas exigências, evidentemente justas mas dificilmente exequíveis, dado o gigantismo das verbas em causa e o facto de as nossas dívidas, mesmo no bom caminho, estarem ainda muito longe de estar sanadas, são reivindicadas, não apenas por alguns dos grupos sociais mais débeis economicamente, aqueles cuja mais elementar justiça social indicaria como preferenciais na reposição dos direitos mas, inesperadamente, por grupos, ou francamente abonados, ou relativamente remediados e que foram totalmente inertes politicamente durante o consulado de Passos Coelho.
Refiro-me, evidentemente, a dois grupos especialmente agressivos e cujo estatuto profissional me parece exigir grande contenção, dado o serviço público que exercem e a deontologia que se lhes exige: os juízes, que ao serem parte dos órgãos de soberania não deveriam, na minha óptica, beneficiar do direito à greve, e os profissionais da Saúde, médicos e enfermeiros, estes menos beneficiados, mas para quem esse direito deveria ser utilizado de forma especialmente circunspecta, já que da sua paralização podem resultar – e sem dúvida resultam – graves inconvenientes para as classes trabalhadoras que dependem inteiramente do Serviço Nacional de Saúde, inconvenientes que se podem saldar, até, na morte ou no prejuízo permanente da sua saúde.
Poderá argumentar-se que são os enfermeiros os profissionais que, de forma mais radical se têm mantido num estado de greve quase permanente e que, chocantemente, se gabam através dos seus sindicatos e, espantosamente, da sua Bastonária, pessoa com ligações partidárias bem conhecidas ao PSD, do “êxito” dessas greves quase contínuas que já levaram ao adiamento de milhares de intervenções cirúrgicas por todo o país.
E é exactamente esta estranha bastonária que informa agora o primeiro-ministro de que Portugal está perante “uma catástrofe e uma calamidade sem precedentes” com cinco mil cirurgias adiadas… Fez a festa, e deita os foguetes!


Isto não é uma greve. É um atentado criminoso à saúde dos portugueses mais desfavorecidos! Dêem o nome aos bois! A situação parece-me de tal forma grave, que justifica plenamente a requisição civil e com a máxima urgência!

Entretanto, os ventos de revolta que nos chegam de França começam a contagiar as nossas redes sociais, não tão sociais assim porque começam a imitar, não a indignação perfeitamente justa dos “gilets jaunes”, mas a prática violenta dos adventícios, leia-se, provocadores que se lhes misturaram e com eles se confundem, convocando à destruição gratuita… Uma dessas redes  convida “a incendiar Portugal”, coisa de que estamos sem dúvida necessitadíssimos como já se comprovou com os incêndios de triste memória que enlutaram o país!...


Há assim um estado de quase histeria por parte de muitos dos utentes das nossas redes sociais incitando à revolta pela revolta o que conduziria  a nada  mais do que a destruição e, provavelmente, ao jogo dum niilismo inconsequente. Em suma, com Marine Le Pen à espreita e o populismo a subir, já adivinhamos os "abençoados" tempos da maré fascista... E convidam-me a partilhar!
Se um número razoável de franceses apoiantes de Marine Le Pen, oportunisticamente se infiltraram no movimento original da Esquerda, com a intenção clara de o destruir, temos que os imitar? O nosso principal problema é defender a unidade da nossa Esquerda para recuperar o muito que perdemos em direitos com o anterior governo. E aproveitar o que de bom tem sido feito! Não podemos alinhar em provocações, na estupidez do "aqui e agora"!

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018


FALSAS TRANSPARÊNCIAS
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 6 de Dezembro de 2018

Não há nada como a Arte para enganar os sentidos e, assim, a percepção do mundo: Sugerir o movimento na total imobilidade de uma pintura ou escultura, as três dimensões numa superfície plana, a aspereza de uma textura macia ou a macieza de uma forma rude, a distância daquilo que está perto, ou a proximidade do infinito… Os famosos “trompes d’oeil”, as ilusões de óptica praticadas desde a pré-história, sempre deixaram atónitos os seres humanos.
Desde a multiplicação dos membros dos animais, ou a duplicação da cabeça em algumas pinturas rupestres chegadas até nós, sugerindo corrida ou o simples rodar da cabeça, artifício reutilizado na actual banda-desenhada, até aos tectos de edifícios monumentais – igrejas, palácios, teatros… - enormes janelas abertas para o céu, atravessadas por revoadas de anjos ou deuses, fazendo das nuvens o seu apoio…
Mas no capítulo dessas ilusões, suponho que a “transparência” da matéria opaca – mármore principalmente – obtida por alguns escultores da época rococó e neoclássica atinge a quase impossibilidade absoluta. Tive a oportunidade de confrontar essa inacreditável realidade na escultura “La Velata” – ou “Vestale Tuccia” – do artista italiano Antonio Corradini (1688-1751), exposta quase timidamente no Palazzo Barberini, em Roma. 

1. "La Velata" de Corradini

Digo timidamente, porque além de uma localização pouco saliente no espaço museológico, nunca lhe é foi atribuído o título de genial embora se trate de uma extraordinária realização do engenho humano. Da habilidade, não do génio, essa tão difícil classificação, para mais quando exposta junto de obras-primas de artistas como Rafael, Ticiano, Greco, Holbein, Pietro da Cortona, Caravaggio, Bernini…
A ilusão de óptica é tão perfeita que nos apetece soprá-la para observar a impossível ondulação dos tecidos, alquimia que Bernini já alcançara no “Rapto de Proserpina”, ao cravar os avaros dedos de Plutão na carne tenra da também marmórea deusa que podemos admirar noutra galeria da Roma barroca, o Museu Borghese… 

 
 2. "O Rapto de Proserpina", de Bernini
3. "O Rapto de Proserpina" de Bernini, pormenor

O mármore feito carne, a pele acetinada pelo calor do toque, pelo calor do desejo, o milagre do génio!
Habilidade, magia, génio, o que reivindicar perante exemplos de tal forma extremos? Diremos então que Bernini é Bernini, Corradini é Corradini, mas será justo compará-los? Diremos simplisticamente que assim se distingue a matéria dos sonhos, ou trata-se “apenas” de aferir o valor das coisas pela sensibilidade de cada um?
Na verdade, Corradini fez alguma escola: artistas posteriores como Giuseppe Sanmartino (1720-93) Giovanni Strazza (1818-75) e Raffaelle Monti (1818-81) esculpiram novas esculturas marmóreas, igualmente assombrosas, exercícios de pura ilusão… Ainda hoje vemos novos escultores seduzidos por esse hábil experimentalismo. Simples “artesãos” dirão os notáveis do Conceptualismo e de todo o Pós-Modernismo, que põem as palavras à frente das formas plásticas e para quem, se calhar, Bernini está ao nível de um Corradini… mas pelo mais baixo nível!
Pudessem eles aproximar sequer os seus intelectualizados ensaios dos resultados desses “pobres” artesãos, temperados no ardor da suada experimentação artística na oficina, no calor da inspiração!

quinta-feira, 29 de novembro de 2018



TRADIÇÃO E PROGRESSO, 
AS DUAS FACES DA HUMANIDADE
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário", 29 de Novembro de 2018

Janus o deus romano das entradas e saídas,
 do Passado e do Futuro, busto do 
Museu Hermitage, S. Petersburgo, Séc. XVIII
.
O Património Cultural tem merecido vários tipos de abordagem ao longo dos últimos séculos, abordagem essa que varia quase diametralmente consoante as posições sociais e políticas dos seus autores, que ora defendem a quase “santidade” de tudo quanto seja tradicional, no sentido das origens remotas de hábitos e costumes, práticas religiosas e profanas, ora exigem um “aggiornamento” dessas práticas, quando não a sua supressão pura e simples.

Tais posições não derivam de capricho ou má vontade em relação a esses vestígios do passado, mas à compreensão do quanto eles se encontram imbuídos de um espírito ofensivo aos avanços da Civilização. 
Para os defensores a todo o transe da Tradição, é altamente reprovável e mesmo escandaloso que se procure abolir os seus aspectos mais desumanos. Para eles, defender o património é o mesmo que incensar os valores do imobilismo e do Passado, sendo motivo de quase excomunhão qualquer crítica, mesmo moderada… É como se quisessem retroceder a esses tempos míticos, essa pretensa Idade do Ouro, e aí viver para sempre, rodeados pelos frutos de uma prosperidade de que se julgam os únicos merecedores…
É evidente que caracterizei, no primeiro caso, os Tradicionalistas, incapazes de abandonar os trilhos que conduzem à aceitação beata de todos os excessos devidamente “autorizados” pela tradição. No segundo, os Progressistas, aqueles que exigem às sociedades em que vivem o abandono de comportamentos cruéis ou, no mínimo, injustos, totalmente desajustados da nossa época, 
Quando pretendemos preservar um determinado costume popular, um traje, uma dança, uma receita culinária, uma técnica de fabrico artesanal, é sempre a tradição que está em causa. Mas será desejável preservar TODA a tradição? Ou melhor: corresponderão todas as tradições às reais necessidades humanas, aos anseios e expectativas do povo seu depositário?
“Vox populi, vox Dei” ou seja, “Voz do povo, voz de Deus”, diz um adágio popular cuja justeza é mais que discutível e que alguns dos nossos grandes escritores como Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis e muitos outros desmontaram em muitos dos seus romances, que revelam a violência, a crueldade, a ganância revelada nas tão “puras” aldeias do nosso país por gente inculta que, no entanto, através desses e doutros adágios, revelam aspectos altamente chocantes, não compagináveis com o espírito do nosso tempo.
É evidente que também as cidades enfermam de comportamentos muito censuráveis dos seus habitantes, não poucas vezes associados ao “senso comum” do mundo campestre, que desde sempre procurou encontrar as “explicações” para o Mundo e os defeitos e qualidades humanas, que a Ciência, à medida que se diversificava e progredia, ia desmentindo.
Bem ilustrativo de tais contradições, é o acervo infindável dos já referidos provérbios populares, a parte mais considerável da chamada “sabedoria popular”. Esses ditos, geralmente, curtos, condensam séculos de acumulação de experiências, de saberes, mas também, frequentemente, de não-saberes.
“Tal pai, tal filho”, adágio popular bem conhecido, é a conclusão ditada por inúmeras observações, colhidas de geração em geração. É um conhecimento empírico, pré-científico, portanto, mas a humildade das suas origens em nada invalida a sua justeza dado que era garantido pela observação empírica. O que Mendel fez foi procurar-lhe as causas e, assim, os mecanismos da hereditariedade. Ao formular as suas teses, fez irromper uma nova ciência, a genética.
Voltando aos provérbios com objectivos ideológicos, estes tendem a perpetuar um estatuto – por exemplo da pretensa “inferioridade feminina” – que interessava ao sector dominante da sociedade, obviamente masculino, incluindo comunidades letradas, como os membros do Clero e, até profissionais liberais, académicos, políticos...
No primeiro dicionário da língua portuguesa, o Vocabulario Portuguez e Latino de Rafael Bluteau, publicado em 1712, podemos apreciar 77 adágios dedicados à mulher, todos eles extremamente depreciativos e grosseiros: “A molher & a gallinha, com Sol recolhida”, “Dia de S. André, quem não tem porco, mata a molher”!… É claro que “pérolas” deste calibre, as encontramos também na literatura popular e, até, na erudita… mas aqui sob formas mais “polidas… É também claro que o progresso da condição feminina no nosso século as está a converter, espero que definitivamente, em peças de museu, apesar da violentíssima reacção dos homens, sentindo-se apoucados no seu poder e ainda hoje revelando a sua recusa e carácter através da violência doméstica, uma das pragas do nosso tempo…
A própria Cidade era um ninho de contradições, analisadas há mais de um século pelo incomparável Eça de Queiroz, homem sem dúvida progressista, quando se interrogava sobre as terríveis consequências do progresso, se entendido apenas como “progresso técnico”:

“(…) a ideia de Civilização, para Jacinto, não se separava da imagem de Cidade, duma enorme Cidade, com todos os seus vastos órgãos funcionando poderosamente. Nem este meu supercivilizado amigo compreendia que longe de armazéns servidos por três mil caixeiros; e de mercados onde se despejam os vergéis e lezírias de trinta províncias; e de Bancos em que retine o ouro universal; e de Fábricas fumegando com ânsia; e de Bibliotecas abarrotadas, a estalar, com a papelada dos séculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, por baixo e por cima, de fios de telégrafos, de fios de telefones, de canos de gases, de canos de fezes; e da fila atroante dos ónibus, tramas, carroças, velocípedes, calhambeques, parelhas de luxo; e de dois milhões duma vaga humanidade, fervilhando, a ofegar (…) na busca dura do pão ou sob a ilusão do gozo – o homem do século XIX pudesse saborear, plenamente, a delícia de viver!” (“A Cidade as Serras”, Lello & Irmão, Porto, s/d, pág. 15).
Ao definir algumas das contradições entre o campo e a cidade, Eça coloca o dedo na ferida aberta desta civilização de abundância que tanta miséria produziu: entre tantos direitos, onde o direito à felicidade? Progresso, sim, mas QUE progresso?

Mas a cultura tem que ser vivida para se identificar com a comunidade que a criou. As sociedades desenvolvem-se e há valores que acabam por deixar de corresponder às suas necessidades. Mais: há valores tradicionais que passam a contrariar vivamente o progresso dessas sociedades.
É esse o seu lugar, ao lado da Inquisição, da escravatura, das touradas, da pena de morte e de tantas outras coisas… sem esquecermos que povos há que ainda hoje as sofrem no seu dia-a-dia! Bom seria juntar-lhes os muitos outros horrores que continuam a tirar o sono à humanidade…
Há então uma “tradição boa” e uma “tradição má”, como há um “progresso bom” e um “progresso mau”? E, no fundo, tradição e progresso serão atitudes perfeitamente antagónicas?
Parece-me que, como em tudo afinal, é na harmonia das coisas, na justa medida, que reside a solução dos problemas humanos. Progresso, sim, mas com qualidade e gerador da felicidade humana. Tradição também, mas afastada das formas anacrónicas e desumanas que a transformam num travão para o Mundo novo que almejamos, agora cada vez mais problemático, dado o regresso dos fantasmas que incendiaram o século XX...
Aliás, não tenhamos ilusões, é a própria sobrevivência da Humanidade que está em jogo! Então, Progresso e Tradição entrarão em colapso, no colapso final… e não se fala mais nisso!

sábado, 24 de novembro de 2018



O ÓDIO AOS POBRES (3)

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 22 de Novembro de 2018

(CONCLUSÃO)           

No entanto, uma mulher branca, de meia-idade e de aspecto modesto com quem falámos, ao responder a algumas perguntas que lhe fizemos, exteriorizou um azedume violentíssimo e praticamente gritou que toda a cidade era “uma merrda” (sic), as cidades vizinhas eram “uma merrda”, e Porto Alegre – a capital do Estado – era uma “merrda” e tudo era uma “merrda”, e se o Lula “viesse a ganhar”, tudo ficaria ainda pior… Um dos “ovos de serpente” que viriam a eclodir 18 anos depois?


Mas o racismo desponta um pouco em todo o lado, mas com curiosas nuances. Os taxistas que, segundo soubemos por outro taxista (!), eram racistas a mais não poder, espalhavam que as moças brancas só queriam “nêgos” e que estes as matavam “com aquela doença”. O “medo dos pretos” manifestado pelas grã-finas no Rossio e a possível apetência das “outras” brancas – possivelmente as “pobres” – pelos mesmos negros, representa uma contradição que exigiria uma melhor investigação. Mas não há tempo para isso, e vamos apanhando estes indícios pouco claros, aqui e ali, embora a fábula das “preferências” das brancas por negros não seja estranha sequer ao nosso – “ultra civilizado” – continente…


Conhecemos um negro, engraxador (“engraxate”) de profissão, com cinquenta anos já feitos, de nome Jorge de Vargas, que nos contou um fragmento da sua estória de pobreza: com apenas o terceiro ano (terceira classe) era motorista de “caminhão” noutra cidade, mas a crise fê-lo perder o emprego e rumou a Pelotas em busca de trabalho. Não o encontrou, como o não tem um sexto da população. Muitos recorrem a trabalhos improvisados: moto-táxis, aluguer de póneis e bicicletas, guia de turistas… Ele deitou a mão ao de “engraxate”, mas até para o material improvisado que usa teve que pedir fiado: a uma loja popular (do género dos nossos antigos “trezentos”), uma escova, ao dono do café onde iniciou o seu trabalho, a graxa e, com umas tábuas lá amanhou a caixa… Um homem suave, cheio de dignidade e com alguma alegria, embora nem casa tenha. Perguntou-nos se, de onde vínhamos, havia também “guris” a fazer este serviço. Dissemos-lhe que sim, um pouco contrafeitos, e ele pareceu mais tranquilo, como se isso o justificasse na ordem do mundo. Esta é uma época má para ele, porque as pessoas quase só usam sandálias, mas o Inverno (que só começa em Junho) é amigo: traz a lama e o elegante tem que recorrer a uma dúzia de pessoas como ele que percorrem o centro da cidade. Sente-se feliz, porque é sozinho:
            — Gosto de viver bem — diz ele, e essa declaração absurda caiu como uma cortina de ferro sobre o calor pesado e o azul insuportável daquela tarde.
            — Vivo só com Deus, e estou bem — diziam os seus olhos tranquilos. Quando lhe dissemos que era um filósofo, ele concordou.
            — É uma pessoa que sabe muito — e confirmou-o contando uma estória canalha em que tinha posto na ordem um “negão” que costumava humilhá-lo pelo seu trabalho.
            — Gostei de falar com os senhores — e este cumprimento trouxe àquela tarde quente, uma frescura nova.
            Afastados por muito mais do que os milhares de quilómetros que separam Pelotas de Tomar, encontrámo-nos nesse brevíssimo e caloroso momento, apagando fronteiras, pigmentos, preconceitos…


FOTOS DE C.VELOSO
Vistas do mercado municipal de Pelotas

quinta-feira, 22 de novembro de 2018


UM RESTAURO DESASTROSO
Carlos Rodarte Veloso
Enciclopédia Ilustrada
22 de Novembro de 2018
Um painel de azulejos neoclássico do Palácio de Queluz, da autoria de Francisco Jorge da Costa (1784) mostra a experiência de #Arquimedes com espelhos destinados a incendiar à distância. 
Foi este o método utilizado por #Arquimedes na defesa da cidade-estado de Siracusa, para destruir a esquadra romana durante a 1ª Guerra Púnica..
Mas no restauro do painel, na 1ª metade do século XX pela Fábrica Aleluia, o Sol que lá devia estar no canto superior ditreito, e era fundamental para a experiência, foi substituído por uma nuvem!

Bibliografia: MECO, José, O Azulejo em Portugal,,Alfa, ,1989, pág.233



domingo, 18 de novembro de 2018


O NAUFRÁGIO DO SAN PEDRO DE ALCÂNTARA EM PENICHE NO ANO DE 1786
TRAGÉDIA MARÍTIMA E SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL (*)
Carlos Rodarte Veloso
“Correio Transmontano”, 18 de Novembro de 2018

Fez este ano 232 anos que ocorreu o naufrágio do célebre navio de guerra espanhol San Pedro de Alcântara, em Peniche . Este navio, com as suas sessenta peças de artilharia e 419 ocupantes entre tripulação e passageiros, carregado com os tesouros do Peru, tinha partido de Lima a 14 de Abril de 1784, com destino à cidade de Cádis. A bordo viajava, prisioneiro, com outros peruanos, o filho do último rei inca Tupac-Amaru II, Fernando Tupac-Amaru, com 11 anos de idade, o qual se salvou da morte no mar, mas não da prisão à qual o tinham destinado, em Espanha.
O naufrágio, na noite de 2 para 3 de Fevereiro de 1786, contra os recifes do grande rochedo em forma de torre, a Papôa, provocou uma sentida emoção entre a população marítima da vila que, em vez de pilhar os salvados do navio e os próprios sobreviventes, com era então prática corrente entre muitos povos vivendo junto ao mar, salvou muitos da morte, tratou dos feridos e alimentou e vestiu carinhosamente todos os sobreviventes com eles dividindo as suas casas e recursos. As operações de salvamento foram documentadas pelas pinturas de Jean Pillement (fig.1), um artista francês residente em Portugal, que de imediato se deslocou ao local. Outro artista, este espanhol, Luis Peret Y Alcázar, também deixou testemunhos gráficos da tragédia e subsequentes acções de recuperação de salvados (fig.2).



Quanto aos bens materiais, eles foram sendo recolhidos, desde o primeiro momento, primeiro por meios rudimentares e, depois da chegada de duas fragatas espanholas enviadas para o efeito, com o apoio de mergulhadores. Entre moedas de ouro e prata foram resgatadas 4 066 585 patacas (moeda de prata de 320 réis). O recurso aos mergulhadores equipados com equipamento denominado “búzios”, deveu-se à profundidade a que se encontravam as riquezas perdidas, cerca de 9 metros na maré vazante. Um texto oficial (**) documenta os elogios dos representantes diplomáticos espanhóis perante a generosidade evidenciada pelo povo da vila e a acção imediata das autoridades portuguesas e da própria rainha, D. Maria I, ao facultarem todos os meios possíveis para a salvação de corpos e almas dos náufragos.
A arqueologia confirmou a narrativa, e dois pesquisadores, Jean-Yves e Maria Luísa Blot, encontraram, no Verão de 1985 e 1986, os esqueletos dos náufragos sepultados pelos habitantes da vila, e ainda moedas e artefactos que tinham escapado às buscas efectuadas havia duzentos anos, nomeadamente grilhetas (fig.3) dos prisioneiros incas. Mais do que isso, detectaram ainda, entre os habitantes da Peniche dos nossos dias, lendas e superstições relativas ao longínquo naufrágio.


(*) Extracto da versão portuguesa da comunicação Causes de naufrage dans les routes maritimes portugaises de l’ancien régime - de l’erreur humaine à la violence organisée, apresentada ao 4th International Congress of Maritime History, em Corfu, Grécia, 23 de Junho de 2004.
(**) Relação dos Grandes Elogios Que Tem Feito os Hespanhoes À Nação Portuguesa, e ao Excelentissimo Senhor Duque de Lafoens, pela vigilancia, e cuidado com que lhe assistirão aos que se salvarão do Naufraugio da Nao de Guerra S. Pedro de Alcantara, sucedido nas costas da Peniche, com a noticia de todo o cabedal que se tem tirado; e do Naufragio proximamente sucedido no fim do mez de Abril na dita Costa, Na Officina de Filippe da Silva e Azevedo, Lisboa, 1786.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018



O ÓDIO AOS POBRES (2)
Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 15 de Novembro de 2018


(CONTINUAÇÃO) 

Há também um número razoável de africanos, decerto descendentes dos antigos escravos que por aqui trabalhavam nas charqueadas, a indústria da salga da carne. Aqui bem perto existem ainda as ruínas de um quilombo, o do Morro de Quinongongo, local de fuga e resistência dos escravos fugidos, hoje apenas do interesse de historiadores e arqueólogos. São hoje evidentemente “livres”, mas mantém-se a sua herança de pobreza, vivendo a maioria na periferia. 

Relativamente às casas de habitação mais representativas, estas raramente ultrapassam um piso de altura, com uma fachada que pouco excede a largura de uma porta e duas janelas, são invariavelmente rematadas por uma platibanda recortada e esculpida. Também as cores, geralmente vivas e contrastantes, aumentam o pitoresco das ruas de Pelotas. Um exemplo pobre desta tipologia está aí, em imagem, uma sede local do PT, o Partido do Trabalhadores, então a três anos de distância do poder, que depois, tão dramática e polemicamente perdeu.


Mas para saborear os gostos e os olhares que marcam as diferenças, nada melhor que o comércio popular, dos restaurantes às lojas de produtos religiosos afro-católicos, como a Iemanjá da figura anexa, do mercado municipal ao comércio paralelo. 


Ver a recolha do lixo é um espectáculo desportivo, os funcionários a correr, à vez, atrás do camião, a apanhar os sacos em corrida… E os subúrbios nada têm que ver com a regularidade urbana do centro de Pelotas. Ruas que são caminhos serpenteantes de terra batida, ladeados por casas pequenas de um andar, muitas delas em cimento.
Em chocante contraste, aqui e ali, prédios altos com os telhados revestidos de arame farpado e torres de vigilância, algo que recorda graves clivagens sociais, aliás ilustradas por chocantes declarações de três jovens rio-grandenses das classes médias-altas, evidentemente brancas e racistas a um ponto inacreditável, que se horrorizaram no ano seguinte, ao visitar a nossa luminosa Lisboa, por ter que atravessar, “cheias de medo” um Rossio “cheio de pretos”!
Mais do que ódio racial, aqui bem documentado, o que me pareceu muito óbvio e bastantes vezes declarado, foi a atitude de “ódio aos pobres” revelado por gente bem colocada socialmente nessas comunidades do Sul. Inacreditável, no País do multiculturalismo! Entre os jovens estudantes que contactámos, essas atitudes negativas pareciam mais diluídas, embora se não possam comparar com as relações mais abertas existentes nos Estados do Norte.
Isto não explica nada, no contexto destas tão estranhas eleições brasileiras, em que os pobres forneceram todas as armas – literalmente! – aos seus inimigos mais figadais…

quinta-feira, 8 de novembro de 2018


O ÓDIO AOS POBRES (1)
Carlos Rodarte Veloso


“O Templário”, 8 de Novembro de 2018


Visitei, no final do ano 2000, a cidade de Pelotas, no Estado mais meridional do Brasil, Rio Grande do Sul, integrado num grupo académico do Instituto Politécnico de Tomar. Comemorava-se, então, o quinto centenário da chegada de Pedro Álvares Cabral a “Terras de Vera Cruz”, um dos nomes com que foi baptizada essa terra que ainda nem sonhava a extensão, nem a riqueza que o futuro lhe destinava.
Nesse ano do achamento, era ainda um país de sonho que emergia das brumas de um éden reconquistado, quem sabe se uma derradeira oportunidade de iludir o pecado original, de apaziguar o tremendo Velho dos Dias e fundar o Reino de Deus na Terra… Mas era tudo ilusão, ou melhor, era quase tudo ilusão… Passaram-se os anos e novos herdeiros desse pecado, já tão pouco original, encheram a terra e povoaram-na. Terra Prometida, como toda a América, acolheu gente de todo o mundo, em busca de fortuna, acotovelando-se e acotovelando os últimos nativos, que se foram retirando, na ponta de baionetas, para o sertão, depressa substituídos, no trabalho escravo, por milhares de africanos, os escassos sobreviventes de viagens de pesadelo no bojo das nossas naus transatlânticas.
Às cidades de raiz portuguesa foram-se juntando novas cidades, de influência italiana, alemã, espanhola, enquanto libaneses, japoneses, ingleses, descendentes dos escravos africanos e gente de mil outras desvairadas origens, juntavam as suas culturas a esse efervescente caldo cultural que, é afinal, todo o Brasil.
Pela beira da estrada sucediam-se manadas intermináveis de bovinos, enquanto junto às chácaras, improvisados postos de venda expunham cebolas e outros produtos agrícolas, enquanto espaços arborizados nos mostravam oliveiras, figueiras, pinheiros, tudo bem ao nosso jeito, sinal de que este território, embora com características subtropicais, se encontra na zona temperada do sul.
As origens portuguesas e a posterior fixação de numerosos imigrantes provenientes dos Açores e outras províncias lusas, dá-lhe um certo ar familiar, visível em muitas das suas casas
No mercado, bem parecido com as nossas feiras, em que o plástico e o “made in China” dominam cada vez mais todo o comércio popular, algumas barracas rompem com a “invasão” asiática vendendo chás, ervas diversas, cascas de árvores e raízes e, claro, o mate, erva de que se faz a famosa bebida gaúcha que constitui um hábito bem enraizado em toda a população.
A praia atlântica mais próxima da velha cidade de Rio Grande é Cassino, pequena povoação que acompanha a extensa faixa de areia, plana como uma larga estrada, que vai morrer nos molhes da barra, grandes pedras amontoadas penetrando quatro quilómetros pelo mar dentro.
A primeira coisa que vimos, à entrada da povoação, foi uma grande imagem de Iemanjá, a venerada deusa africana das Águas, a quem rezavam, ajoelhadas, duas mulheres. As semelhanças com o culto mariano não se ficam pelas aparências imediatas e exteriores. Há mesmo um paralelismo assumido, na religião afro-americana a que se chama Macumba, entre esta divindade marinha e a catolicíssima Nossa Senhora, como o há entre as outras deidades africanas, para aqui trazidas pelos escravos negros, e o próprio Cristo e muitos dos santos do calendário litúrgico, o Diabo incluído… Religião popular, religião de resistência
Marca desses cultos, que já conhecia das saborosas leituras de Jorge Amado, ramos de flores e moedas depositadas na areia, na orla das ondas, constituem respeitosa oferenda que a leve ondulação marinha vem beijar. E é agora o extenso areal que percorremos, com o chão tão plano e tão duro como uma pista de aviação, que bicicletas e carros de todos os tamanhos nele deslizam como na auto-estrada! … Até o nosso ónibus, bem pesado, nele desliza, bem rente à orla da maré baixa, até que o distante molhe se torna próximo e se vislumbram estranhas caranguejolas deslizando sobre carris, munidas de vela triangular, como se de barcos se tratasse…

Foto de C. Veloso - À vela sobre carris

É este mais um indício dos recursos inesperados a que uma população em dificuldades pode lançar mão para melhorar a vida. As vagonetes à vela (ver imagem), como que tiradas das páginas de Júlio Verne, são decerto um complemento para os magros meios de muitos, mesmo nestes bem pouco estivais meses de Verão.
Além de História e estórias, que são tantas, é nas ruas da cidade de Pelotas que encontramos aquele sabor único que só o Brasil pode proporcionar, principalmente nesse tempo quente que Dezembro oferece, tão em contraste com a quadra natalícia que se anunciava em cada “camelô” do Calçadão, com as gambiarras a acender e a apagar, presépios, estrelas e outros enfeites e uns Pais Natal (Papais Noel!) bem em carne-e-osso, suando copiosamente debaixo dos deslocados gorros e casacões vermelhos, guarnecidos de golas bem peludas!
E nesta terra gaúcha é a carne de bovino a imagem de marca em todos os restaurantes, nos grandes rodízios, em que a refeição não é barata como nos pequenos restaurantes populares, bem em conta, em que vimos uma mãe de família a negociar o preço do almoço, dela e de uma filha e em que se encontra o prato regional, carne na panela, de vaca, claro, cozinhada com feijão, e que feijão! …
Mas falta falar, mais detidamente, da gente que aqui se desloca num vaivém ininterrupto. Nestes estados do Sul predominam as etnias europeias, com predomínio dos luso-descendentes, mas também um bom número de descendentes de italianos, espanhóis, alemães, libaneses e, também, africanos e índios. Estes, que eram os senhores das terras do antigo Território das Missões, expulsos para outros lados depois das sangrentas campanhas luso-espanholas do século XVIII, estão reduzidos à miséria, e é fácil identificá-los nas bermas das estradas, em acampamentos improvisados com miseráveis tendas de lona e pedaços de plástico, a vender os seus artísticos cestos multicolores e as redes, vestígios de uma identidade que teima em sobreviver. (...)