sábado, 12 de dezembro de 2020

 

IDENTIFICAÇÃO DE UMA ESTÁTUA DE TOMAR

 “O Templário”, 20 de Dezembro de 2020

Carlos Rodarte Veloso 

Uma estátua pétrea arrumada num canto do Claustro da Lavagem do Convento de Cristo tem episodicamente atraído a atenção de alguns arqueólogos, historiadores de Arte e tomarenses interessados nas antiguidades da Cidade. 

Dessa estátua se ocuparam a arqueóloga, Doutora Salete da Ponte [Algumas considerações sobre Tomar Romana ‘Selium’”, Boletim Cultural e informativo da Câmara Municipal de Tomar, Nº 4, 20 de Outubro de 1982, pp. 164 e 173] e eu próprio [“Duas Estátuas de Tomar? – Problemas Iconográficos em torno da estátua mutilada do Claustro da Lavagem do Convento de Cristo, ou duas estátuas de Tomar?”, comunicação ao Seminário: Espaço Rural da Lusitânia, Tomar e o seu Território, 1989], há portanto, respectivamente, 38 e 31 anos.

Perdida a memória desse pequeno debate – 31 anos é muito tempo, principalmente quando a documentação é escassa ou contraditória, entendi republicar o meu artigo, que teve então o apoio da referida arqueóloga Salete da Ponte – assim corrigindo o seu próprio ponto de vista, que a considerava romana – do Arquitecto Cornélio da Silva e do então Conservador do Convento de Cristo, Arquitecto Álvaro Barbosa e do seu excelente colaborador, o Sr. Rui Ferreira e do Dr. António Martiniano Ventura, cujas fotografias ilustram o presente artigo.

De facto, a Doutora Salete da Ponte classificou inicialmente a dita estátua como uma “estátua couraçada romana” já então designada entre o pessoal do Convento como S. Cristóvão.

A informação do poeta inglês Robert Southey, que visitou Tomar em 1801, referia uma estátua colocada numa das extremidades da Ponte Velha, “estátua tão desgastada pelo tempo, que a tosca aparência da criança que está nos seus braços seria insuficiente para identificá-la com S. Cristóvão, sem a ajuda da tradição”. Diz ainda: “as pernas estão esburacadas sem piedade – porque se considera que alguns grãos da perna de S. Cristóvão, tomados num copo de água, são um remédio excelente para as sezões” [Robert Southey, Diário de uma estadia em Portugal, Oxford, 1960, pp. 30-32], o que corresponde inteiramente às características da enigmática estátua.

Já o Dr. João Maria de Sousa [Notícia Descriptiva e História da Cidade de Tomar, 1903, pp. 13-14] se refere ao alargamento da faixa de rodagem da Ponte Velha, altura em que uma estátua de Stº. Estevão (sic) aí existente no lado sul, fora retirada “não sabemos para onde”. Essa estátua era, apesar da diferente denominação, a mesma do Claustro da Lavagem, que nada mais apresenta do que o tronco e as pernas, fortemente erodidas, a ponto de o joelho direito, originariamente flectido, ter totalmente desaparecido.

Quanto à data do “desaparecimento” da estátua da Ponte Velha, é difícil determiná-la, visto ter havido várias reparações daquela ponte. Teria havido uma em 1885, ou pouco depois, visto serem dessa altura “obras de reparação da ponte sobre o Rio Nabão”.

No entanto e segundo Amorim Rosa [Anais do Município de Tomar: 1870-1900, Tomar, 1967, pp. 238], parece mais provável ter-se verificado essa remoção em 1901, aquando do alargamento da faixa de rodagem, sendo “alargamento” e não “reparação” a que o Dr. Sousa se refere.

Sobre a origem da estátua, é ainda Amorim Rosa quem nos esclarece: “Conjuntamente com a grande reparação de moinhos e lagares da Ribeira da Vila, mandou D. João V reparar a Ponte de D. Manuel. Construíram-se guardas e pôs-se nela um S. Cristóvão em tamanho natural, voltado a Sul, logo à entrada, vindo de Além Ponte” [História de Tomar, Tomo II, Santarém, 1982, pp. 55-56], cuja “raspagem das pernas” é corroborada por Ignácio de Vilhena Barbosa [As cidades e villas da monarchia portugueza, que têm brasão d armas, Tomo III, Lisboa, 1982, pp.77].

Assim, parece comprovado, à luz da informação recolhida, que esta estátua é a mesma hoje existente no Claustro da Lavagem e, fotografada por Vieira Guimarães [Thomar – Stª Iria, Lisboa, 1927, pp. 77] instalada então, próximo da arruinada Ponte das Ferrarias e da capela de S. Lourenço. Era já essa a sua localização em 1903, quando o Dr. Sousa a refere como a estátua “de Henrique de Quental” (sic), situada perto da Ponte das Ferrarias que, e passo a citar, “ainda hoje lá se vê, já decapitada” [Sousa, ob.cit., p.87]. Esta informação, colhida de Pinho Leal, transcreve erradamente “Henrique” por “Aires de Quental”, “cuja estátua,” no dizer deste autor, “ se vê junto da ermida de S. Lourenço [LEAL, Augusto de Pinho, “Nabão”, Portugal Antigo e moderno, Tomo VI, Lisboa, 1875, p.10]. Foi Aires de Quental, feitor-mor de D. Manuel I e de D. João III, quem fez erigir esta Ermida, no local de encontro das tropas de D. João I com as de Nuno Álvares Pereira, a caminho de Aljubarrota, no dia de S. Lourenço, 10 de Agosto de 1385. Quanto a tratar-se da estátua do feitor-mor, considero-a absurda. De momento interessa-nos que, para além de estátua da Ponte Velha, aí instalada, pelo menos até 1885, mais provavelmente até 1901, um texto publicado em 1875 refere uma estátua que sabemos ser a do Claustro da Lavagem. Teriam existido, assim, duas estátuas, de uma das quais se teria perdido o rasto entre 1885 e 1901, coisa muito improvável!

Será apenas coincidência o facto de ambas as esculturas terem as pernas impiedosamente raspadas e serem ambas de tamanho natural? E a referência do Dr. Sousa, em que insisto, sobre as pernas de “Stº Estevão” só poderem sustentar o tronco, sendo tronco apenas o que é sustentado pelas da “outra” (?) estátua?


Procurei assim documentação que sustentasse o transporte da estátua que nos resta, decerto a única que alguma vez existiu, para o local onde hoje se encontra, no Claustro da Lavagem do Convento de Cristo. Sendo a mesma propriedade da União dos Amigos dos Monumentos da Ordem de Cristo, de que Vieira Guimarães foi membro e também Presidente, busquei nos seus Anais registo dessa transferência, a qual, penso, se deve ter efectuado pouco depois de 1927, data da publicação dos mesmos Anais, e período muito rico no envio de esculturas para o museu da mesma União, instalado no Convento. No entanto, a grande indefinição da maioria dos registos, não permite identificar a estátua em causa.

Aparentemente esgotadas as fontes escritas que poderiam esclarecer o caso, restava o regresso ao documento por excelência, a própria estátua mutilada, tão fria como muda…

No seu calcário erodido, a estátua decapitada mede 1,56 m de altura e veste saial e manto, caído pelas costas, abundantemente pregueado sobre o ombro direito; do manto caem pregas largas e muito lineares, pelas costas, embutindo a sua extremidade na base da estátua, como suporte adicional. A forte erosão sofrida impede o reconhecimento de quaisquer pormenores, excepto do cinto, perfeitamente visível.

Mas o “chão” em que assente a estátua revela algumas surpresas: de facto, a superfície em que estão embutidos os tornozelos é ondulada por sulcos perfeitamente paralelos, de forma alguma atribuíveis à erosão ou a factores estranhos à vontade do artista. Esse ondulado avoluma-se, destacando-se dessa superfície, no extremo à direita da escultura, formando uma quase espiral

Não parece haver dúvidas da intenção do escultor de representar uma personagem com os pés mergulhados numa corrente líquida, formando-se um redemoinho à sua direita, acidente que apresenta uma rugosidade, aparente vestígio de fractura na zona central.

Na zona superior da estátua detecta-se uma razoável cavidade ovalada, com cerca de 14 por 9 cm imediatamente abaixo do ombro. O que resta do braço direito, mutilado acima do cotovelo, sugere, pela disposição das pregas da manga, que aquele membro estaria flectido, com a mão a uma altura aproximada da referida cavidade.

Nada mais havendo de relevante a assinalar, foi encarada, pela Doutora Salete da Ponte, a hipótese de se tratar mesmo de uma estátua romana do tipo militar, abundante na Península Ibérica, designada por “thoracata” ou “couraçada”. Da sua comparação com exemplares publicados por Paloma Acuña Fernandez [Esculturas militares romanas de España y Portugal. – I - Las esculturas Thoracatas, Roma, 1975], verificou-se, numa primeira impressão, um aparente paralelismo de atitudes mas, na realidade, há um maior dinamismo no exemplar em estudo: a sua perna direita está flectida, como vimos, e só a ausência de joelho a faz parecer erecta; na verdade há uma forte sugestão de marcha. O braço direito, vestido, não corresponde também ao colobium, camisa de manga curta ou sem manga, geralmente com correia de couro sobreposta.

Quanto à indispensável couraça, não se lhe distingue nenhum traço. Parece pois de excluir a possibilidade de estarmos perante uma thoracata.

De tudo quanto foi dito, parece poder-se concluir que a estátua apresenta uma postura de marcha estando os pés mergulhados num curso de água, e o braço direito, de que apenas resta o antebraço quase completo, bem flectido, empunhando talvez um bordão.



Esta caracterização corresponde exactamente a alguns aspectos da iconografia de S. Cristóvão: o gigantesco santo atravessando a vau, apoiado no seu bordão, com o Menino no outro ombro, [RÉAU, Louis, Iconographie de Chrétien, T. III, Paris, 1959, p. 1486-1487] elemento esse agora perdido, quem sabe se reaproveitado parcialmente para outra escultura ou, muito simplesmente, caído ao rio.

Sendo de excluir, por absurdo, tratar-se da representação de Aires de Quental, estaríamos perante duas estátuas, ambas paradoxalmente de S. Cristóvão, ambas nas margens do mesmo rio, a uma distância de cerca de 2 km uma da outra, ambas com as pernas raspadas… Devo confessar que é muito difícil aceitar tantas coincidências: o S. Cristóvão visto por Southey em 1801, transportando o Menino, o qual lhe parece quase irreconhecível, e que o Dr. Sousa, em 1903, “baptiza” de Santo Estevão, de muito diferente iconografia, são uma e a mesma coisa. A confusão de nomes parece-me irrelevante num Autor que troca os nomes de Aires por Henriques de Quental… É ainda deste Autor a referência à estátua da Ponte Velha como apenas um “tronco”, quando aceita como boa a informação de Pinho Leal, em como a estátua “das Ferrarias” seria a de Aires de Quental, funcionário real quinhentista… Ele não viu, nem poderia ver, a estátua na Ponte Velha, mas viu-a nas Ferrarias!

Ficamos assim reduzidos às contradições de dois Autores, ou melhor, de um apenas, visto que as de um derivam da aceitação das do outro… Estão elas na declaração de Pinho Leal, já referida, da existência da estátua nas Ferrarias, quando sabemos estar “a outra” – na verdade a mesma! – simultaneamente na Ponte Velha , e que na zona das Ferrarias existem outros elementos ligados a Aires de Quental, o que poderá ter conduzido Pinho Leal a lapso, já que a sua obra é de tal modo abrangente, que muito dificilmente terá tido  acesso presencial a grande parte do seus testemunhos, antes obtidos por informações de terceiros.

 CONCLUSÕES 

Teríamos então uma única estátua de S. Cristóvão, trazida para Tomar cerca de 1710, imagem barroca em dimensões naturais, com o santo atravessando vigorosamente a vau, bordão na mão direita, trazendo, apoiado na esquerda, o Menino. A erosão natural e a proveniente da superstição adelgaçaram-lhe as pernas, mas Southey pôde vê-la ainda suficientemente intacta para identificar a sua iconografia [VELOSO, Carlos, Tomar Setecentista na obra de viajantes estrangeiros, História, Arte, Indústria, Centro de Estudos de Arte e Arqueologia, Outubro de 1988, p. 35].

Os “melhoramentos” introduzidos na ponte, aquando do seu alargamento teria sido testemunhado por turistas ingleses, já do início do século XX, A.C. e Stanley Inchbold [Lisbon and Cintra: with some account of other cities and historical sites in Portugal, London, 1907, p. 185]. Nessa altura já a estátua se devia encontrar mutilada pois, como vimos, o Dr. Sousa já se lhe refere como “um tronco”.

Esta ideia remete-nos para os actos de vandalismo praticados no País, especialmente em Tomar, tropas napoleónicas, mas também pelos nossos aliados britânicos, em 1808 e 1810…

Assim, desde 1903 até data pouco posterior a 1927, a estátua estaria situada no topo sul da muralha sebástica, às Ferrarias, num eterno deambular, até ser “arrumada” pela UAMOC no Claustro da Lavagem, onde hoje ainda se encontra, decerto esperando a limpeza e conservação que decerto merece, depois de tanto sofrer…

Termino, vincando a relatividade destas conclusões, com algumas pontas irremediavelmente soltas, apesar de o S. Cristóvão ter estado sempre associado ao Rio Nabão, símbolo eterno da travessia, que ele próprio simboliza.

 

sábado, 21 de novembro de 2020

 

PROCURA-SE NEGAR A CIÊNCIA, REGRESSANDO-SE A  EXPLICAÇÕES PSEUDOCIENTÍFICAS, SEMPRE COM UM PÉ NA TEOLOGIA OU NA METAFÍSICA

A propósito de Darwin e da Evolução: a estratégia da aranha consiste na perfeição e resistência da sua teia, na competência que milénios de Evolução lhe conferiram. Não me venham para cá com o "designer inteligente" ou outras justificações pseudo-científicas e místicas, sempre com deus escondido por detrás de uma nuvem ou pela própria névoa da humana ignorância, porque por cada sucesso na sobrevivência das espécies houve milhares de fracassos estrondosos e, assim, extinções em série, ainda em curso. Tentativa a tentativa se foi criando o êxito e o fracasso. Um "designer inteligente" fracassaria alguma vez?






sábado, 14 de novembro de 2020

 

A GRANDE FRAUDE
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 12 de Novembro de 2020
Depois da maratona estado-unidense dos últimos dias, festeja-se – leia-se: a maior parte do mundo festeja! – a derrota de Trump e a eleição de Joe Biden e de Kamala Harris para a presidência dos EUA.
A intrincada teia da Constituição norte americana, cuja contagem de votos acaba por beneficiar os candidatos minoritários, leva à aberração de os menos votados conseguirem – como aconteceu nas eleições que deram a vitória a Trump – superar os milhões de votos de vantagem da sua concorrente directa, dando uma estranha imagem do conceito de Democracia naquelas terras que se consideram o seu berço.
Nas actuais eleições repetia-se o mesmo ciclo vicioso, e as estranhíssimas alegações de Trump de lhe roubarem a sua “folgada vitória” – que é coisa nenhuma – através de alegada fraude obtida pelos Democratas nos votos pelo correio, conduziram à sua inacreditável atitude de bombardear os tribunais com essa espantosa acusação…
Espantosa, mas levada a cabo por um batalhão de advogados, tentando bloquear a contagem dos votos e assim ilegalizar, Estado a Estado, as contagens mais que vitoriosas dos Democratas.
O grande problema a que esta atitude conduziu foi a aparente recusa de Trump de entregar o poder – pelo menos parece ser essa a sua estratégia – e a ameaça estribada numa sinistra milícia, a QAnon, muito semelhante às SA e SS de Hitler ou as outras tropas de choque dos fascismos do século passado, armada até aos dentes, ameaçadora da ordem naquele país e, até, apontada como possível organizadora duma – nova – guerra civil!
É próprio filho do candidato derrotado que se apresenta como o possível dirigente daquele bando de autênticos energúmenos.
A alegação de fraude esgrimida contra Biden é claramente falsa, dado ser uma tese sem qualquer prova material, que as próprias redes sociais têm denunciado, chegando a bloquear as declarações de Trump, declaradamente difamatórias.
A verdadeira tentativa de fraude é dele próprio, o mais mentiroso e descarado dos políticos deste século.
No meio dos naturalíssimos festejos que celebram o fim de uma amarga experiência política que pôs os States e o Mundo de pernas para o ar, associada ao triunfo da morte trazido pelo Coronavírus, aliás criminosamente negligenciado pela administração de Trump, fica a ameaça, esperemos que inconsistente, de um conflito em que, venhamos a ver a Casa Branca cercada pelo exército do QAnon, disposto a manter no poder um criminoso colado ao poder, que fez escola em inúmeros países.
Esperemos que triunfe o bom senso e o Mundo tenha um momento de – muito relativa – paz.
Apesar da pandemia e dos mil problemas que agora enfrenta!
Gosto
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sexta-feira, 30 de outubro de 2020

 

A Poupa

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 29 de Outubro de 2020

 


Há muitos anos, estávamos ainda perto de meados do século XX, uma das vocações que mais me atraíam era a busca de regiões remotas ainda por descobrir, com a indispensável dose de Aventura, como se ser caçador, navegante ou explorador, pela terra e pelos mares fosse a própria essência, de uma existência cheia, feliz e perigosa, influenciado que fui pelos livros de Emílio Salgari e Júlio Verne, pela banda desenhada – então chamada “quadradinhos” - de publicações destinadas à juventude, como o mítico “Cavaleiro Andante”, que dava um acesso imediato e simplificado à literatura clássica, embora com o senão de esse acesso ser perigosamente redutor e nem sempre rigoroso.

Seja como for, essas temáticas, mistura de sonhos e realidade, eram indissociáveis da parafernália de livros que gradualmente fui lendo da biblioteca familiar, furiosamente, acriticamente, sem desprezar nenhuns, das obras então consideradas “adultas” às versões ditas juvenis, dedicadas nesses tempos, em que rapazes e raparigas tinham autores específicos do seu género, para os respectivos sexos…

Um rapaz ler Jane Austen ou as Irmãs Brontë era sinal de tendências duvidosas, sendo preferível Stevenson ou Ballantyne, e ficavam os gostos – e, necessariamente, as tendências – arrumados nas tais “gavetinhas” das tradições e preconceitos, ainda hoje em vigor em demasiadas geografias.

Mas adiante, a minha fixação na caça radicava numa atracção – hoje diríamos, muito “americana” – nas armas e no seu poder mortífero. Talvez esse gosto pela violência, desenvolvimento “natural” de tendências genéticas masculinas (?), alimentadas pelo espírito de tribo dos amigos e colegas com a mesma idade e os mesmos gostos, alimentasse esse gosto paradoxal pela destruição dos objectos amados, neste caso os animais selvagens.

Paradoxal também esse amor à Natureza, que tentava representar artisticamente, de que é exemplo a Poupa que representei numa aula de Desenho do Liceu, depois de ter abatido um exemplar com a recém-estreada espingarda de pressão de ar oferecida pelos meus Pais.

Ciente de que o verdadeiro caçador só caça para se alimentar – era um passo apenas, mas um passo - para a justificação de uma actividade que já considerava algo censurável, fiz cozinhar a “peça de caça”, cujo gosto me repugnou, convém que se diga…

Depois disso nunca mais atirei em ser vivo, limitado agora ao muito mais saudável tiro ao alvo, e as minhas passadas tendências vocacionais passaram para dois poderosos pólos, a História e as Ciências Naturais.

Dei-me à História, que me apaixona, mas nunca abandonei o meu gosto pelos animais. É preito deste gosto – paixão – o regresso ao meu desenho da Poupa, neste caso embalsamada numa prateleira da sala de Biologia do meu Liceu e agora publicada nestas páginas.

Foi classificada com Muito Bom, e é essa marca que deixo do passado, que poderia ter sido diferente nas suas consequências.

Há poucos anos, uma poupa visitou demoradamente o quintal da minha casa em Tomar, em dois anos seguidos. Depois, desapareceu da minha vista, até agora.

Terei sido perdoado?


sexta-feira, 16 de outubro de 2020

 

À PROCURA DAS PALAVRAS PERDIDAS

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 15 de Outubro de 2020

 

Em nenhuma época da História se escreveu tanto sobre seja o que for, e a quantidade de texto produzido, como naturalmente teria que acontecer, pelo seu volume crescente, não se compadece com a natureza equilibrada que devia presidir à sua redacção.

Porque quantidade e qualidade nunca se deram bem, e hoje toda a gente escreve, sentindo-se democraticamente autorizada pelo veículo de excelência da difusão de ideias, as redes sociais, que aceitam todas as agressões, gramaticais ou ideológicas com a natural complacência das antigas ardósias escolares, as quais tinham pelo menos a virtude de ao serem apagadas, logo caírem num misericordioso esquecimento.

Como se fosse pouca a difusão electrónica das opiniões de todos os que julgam saber escrever, muitos desses textos apoderam-se do qualificativo de “literatura” e são impressos aos milhões, alimentados pela vaidade dos autores, o acriticismo dos “especialistas” – muito menos especializados do que se julgam, ou os julgam, e ainda menos competentes – e, muitas vezes, o cálculo dos grupos de pressão ideológica movidos pela política de baixo escrúpulo de que o populismo hoje invasor, é o pior exemplo.

É que não basta aplicar as regras gramaticais para se escrever correctamente, e essas, coitadas, já vão bem longe das aspirações de 90% dos escrevinhadores, para mais confrontados com um “Acordo ortográfico” incompreensível, metodológica e esteticamente.

Por isso recuso-me a segui-lo, lamentando tal aberração, até pelo facto de ter sido promovido por personalidades com grandes responsabilidades na Cultura portuguesa e que ainda consigo respeitar, apesar da gigantesca dúvida que agora me suscitam pela sua submissão a modas e políticas que acabam por corromper a nossa bela Língua.

Mas adiante, no emaranhado da comunicação outras formas de escrever se vão impondo, conquistando principalmente uma juventude com escassa formação linguística que, em alucinantes mensagens de telemóvel vão impondo novas modas no falar e no escrever.

Parece que há aqui uma “urgência” de nada dizer excepto os lugares-comuns que a preguiça e a ignorância incentivam.

Claro que esta prática não nasceu em Portugal, mas nos poderosos Estados Unidos, difundindo-se por todo o planeta sob formas o mais básicas possível, que vão retirando às diversas línguas a sua originalidade, a beleza e a pureza das coisas simples, amadurecidas pela prática social e enriquecidas pelas aquisições que o conhecimento faculta.

As contradições nascidas deste desenvolvimento pouco harmónico das formas de falar e escrever, conduzem a meu ver, ao empobrecimento do próprio pensamento racional, desde sempre a reboque da sua expressão material, sendo esta a principal consequência daquele.

O desenvolvimento das nossas competências racionais não pode ficar à margem do uso das palavras, estas cada vez mais desvalorizadas – telegraficamente desvalorizadas! – mesmo no uso mais nobre da palavra escrita e falada, a Literatura.

Palavras, leva-as o vento, dizem… mas há palavras e palavras, muitas delas tesouros em vias de extinção. Preservemo-las enquanto é tempo!

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

 

O ULTIMATO DE UM EMBAIXADOR POUCO DIPLOMÁTICO

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 8 de Outubro de 2020

             Há 130 anos Portugal foi ameaçado pela maior superpotência da época, o Reino Unido, o país com quem mantínhamos – mantemos – a mais antiga aliança da nossa História, de corte de relações e invasão armada, se não abandonasse a região africana designada como Mapa Cor-de-Rosa, zona africana entre Angola e Moçambique, compreendida entre os actuais Zimbabwe e Zâmbia, negociada na Conferência de Berlim (1884-85) com as restantes potências europeias coloniais e ainda com a Bélgica de Leopoldo II que através de manobras incrivelmente maquiavélicas se juntara a esse concerto de espoliadores para assim abocanhar um dos pedaços mais apetitosos de um continente a saque.

Portugal bem esgrimiu um hipotético direito histórico – “arqueológico” no dizer dos ingleses – devido às Descobertas, que acabou por ser humilhantemente ignorado, visto o referido território do Mapa Cor-de-Rosa, que unia Angola à Contracosta – Moçambique – interferir com o programa imperial do Reino Unido, apadrinhado por Cecil Rhodes, que pretendia utilizar esse enorme espaço geográfico para unir por um ferrovia contínua o Cairo – protectorado britânico – com a Cidade do Cabo.

Da ferrovia o plano acabou no esquecimento devido aos enormes obstáculos físicos e económicos a tal empreendimento, mas as consequências políticas da rendição portuguesa ao poder britânico saldaram-se num profundo descontentamento social, na ascensão republicana, na criação do nosso Hino Nacional, na falhada revolução de 31 de Janeiro de 1891 e, em última análise, no regicídio e na implantação da República em 1910.

Agora, em pleno século XXI, a superpotência que agora substitui o Reino Unido no domínio do planeta, os Estados Unidos da América, pela mão do inacreditável Donald Trump e do seu embaixador em Lisboa, George Glass, lança descaradamente a Portugal uma bofetada equivalente, ao pretender obrigar o nosso País a afastar a empresa chinesa Huawey da expansão da tecnologia 5G, assim suplantando a sua concorrência com as grandes empresas norte-americanas do sector, sob pena de retaliações económicas sobre a “influência maligna” da China.

Independentemente de outras considerações, nomeadamente das pressões já efectuadas pelos EUA sobre os nossos aliados da União Europeia, a coação sobre Portugal parece tão mais humilhante, que o nosso ministro Santos Silva acabou por responder à letra às ameaças bem musculadas de Glass, respondendo que “em Portugal, as decisões são tomadas pelas autoridades competentes”, legalmente e à margem de quaisquer pressões externas.

Portugal portar-se-á “bem”, não de acordo com o medo, como Trump evidentemente pensa tudo conseguir, mas no concerto da nossa União e de acordo com os interesses europeus.

O tempo dos diktat acabou com Hitler… ou continua pela História dentro?

sábado, 26 de setembro de 2020

 

MORTE E DESTRUIÇÃO NA ARTE OCIDENTAL
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 24 de Setembro de 2020
Nesta época de pandemia, que acorda em todos nós pavores muito antigos, poderá parecer demasiado mórbida e de mau gosto a revisitação de imagens artísticas que recordam os maiores pavores da Humanidade, literariamente representados na alegoria dos “Quatro Cavaleiros do Apocalipse”, símbolo da precariedade das vidas humanas, presas por um fio apesar dos inegáveis progressos das Ciências e do aparente domínio da Natureza pela Humanidade.
Na verdade, mórbido mais do que tudo, é o combustível diariamente alimentado pelos media, das páginas da imprensa escrita ou televisiva às redes sociais, buscando através do sensacionalismo mais elementar esse pequeno arrepio que faz vender.
Desde a Antiguidade mais remota, as “pestes”, epidemias com que os deuses castigavam os pobres mortais pelas mais pequenas faltas, se associaram a outras causas de morte colectiva, todas elas incontroláveis, não apenas devido ao estádio então primitivo da Medicina mas, acima de tudo, por obra e graça da própria acção humana, voluntariamente desencadeada como forma de domínio sobre outros seres humanos.
Sabemos pouco sobre os primórdios desses “medos”, mas desde o mito do Dilúvio, da caixa de Pandora e outros de origem mesopotâmica, comuns a muitas das civilizações mais antigas, a sua melhor representação literária reside nas páginas da Bíblia, no “Apocalipse de S. João”, em que quatro míticos cavaleiros desencadeiam todos os males da Terra antes do confronto final entre as forças celestiais e as demoníacas, com a necessária vitória daquelas.
O “happy end” do Apocalipse repercute-se em muitas das literaturas do Ocidente, especialmente na ficção norte-americana, embora não corresponda a uma tradição literária obrigatória, o que está patente nos grandes clássicos da Literatura, dos Gregos a Shakespeare.
O triunfo final de Deus – ou do Bem – não corresponde necessariamente ao triunfo dos humanos, mas há vitórias e vitórias, porque o “vilão” a abater é sempre o mesmo, Satanás, e ele acabará inexoravelmente sepultado nas entranhas da Terra, como aconteceu com os Gigantes e os Titãs da mitologia grega no seu frustrado assalto ao Olimpo.
Cada um dos quatro Cavaleiros” do Apocalipse corresponde a um dos grandes males que afligiam e continuam a afligir a Humanidade, e são sucessivamente representados, respectivamente, como a Peste – símbolo de todas as pandemias – cavaleiro branco armado com as flechas indutoras da doença, tal como o Apolo grego que o antecede na Mitologia clássica, a Morte, montada no seu cavalo amarelo esverdeado, símbolo da decomposição, a Fome com uma balança na mão, montada num cavalo negro, e a Guerra no seu corcel vermelho, armada com uma longa espada sangrenta, como é patente na famosa iluminura do “Apocalipse de Lorvão” de 1189.


A obra “mais clássica” representando os terríveis Cavaleiros é a de Albrecht Dürer, uma gravura de 1498, extraordinária de dinamismo, e bem longe do arcaísmo das representações medievais como a de Lorvão.


A representação desses velhos terrores tem a sua expressão mais famosa nas “Tentações de Santo Antão” de Hieronimus Bosch, de c. 1500, tríptico exposto em Lisboa no Museu Nacional de Arte Antiga, em que um mundo infestado de demónios cerca o santo em oração, sendo o céu atravessado pela imagem infernal de estranhos veículos voadores tripulados por seres hediondos, num ambiente de pesadelo em que figuras bizarras antecipam imagens já do século XX, de um surrealismo avant la lettre.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020



OS TRABALHADORES E O POVO

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 3 de Setembro de 2020

A insistência na contestação do uso das máscaras de protecção anti- coronavírus por parte de organizações diversas tanto de direita como de esquerda, um pouco por todo o mundo, é um péssimo sintoma de um pensamento retorcido que não só assume contornos no mínimo suicidários, como inscreve tais raciocínios dentro das mais absurdas teorias da conspiração.
Afirmar-se a “sujeição” à “ditadura da máscara” como uma inaceitável limitação da liberdade parece tão ilógico como o seria defender a abolição dos cintos de segurança nos automóveis ou a liberdade de usar o telemóvel na estrada, ou outros disparates que não apenas conspirariam contra a própria segurança dos seus defensores – o que seria o menor dos males, pois cada um deve ser responsável pelos riscos que assuma correr – mas principalmente das inocentes vítimas dessa criminosa imprudência, no limite vitimadora da sua própria família.
Esta argumentação tem sido abundantemente defendida nas próprias redes sociais, elas habitualmente tão avessas à simples lógica, mas neste caso exemplar, um número crescente de defensores se ergue nas grandes praças deste mundo, assumindo orgulhosa e estupidamente, a sua recusa das mínimas condições de segurança!
Dir-se-ia que esta manifestação de arrojo, de “coragem”, felizmente de uma ainda minoria, configura uma espécie de afirmação dos últimos suspiros de uma espécie condenada à extinção, nós próprios...
Talvez a tão sábia como cega Natureza que tão agredida tem sido, se apreste a conceder à espécie humana a misericórdia da sua limitação aos recursos que tão depauperados têm sido e não permitem alimentar as massas crescentes de famintos que invadem as nossas cidades e as rotas de fuga dos grandes conflitos que ensanguentam um número crescente de países.
Claro que são os pobres as suas principais vítimas, que os ricos estão bem protegidos por detrás dos muros que construíram nas fronteiras da fome, piedosamente escondidas pela nova geração de ditadores de que são vanguarda os Trumps deste mundo.
E enquanto se erguem as vozes cada vez menos tímidas dos inimigos do confinamento, eles próprios ignoram ostensivamente os perigos derivados da sua recusa, quando organizam espectáculos de massas ao arrepio de toda a prudência, preferindo preencher a sua agenda política, como se as suas festas, tanto a nível oficial como privado não oferecessem os perigos que enxergam nas actividades da concorrência!
Conteúdos diferentes e pseudo inócuos têm os desportos de massas, os bárbaros espectáculos de toiros, festas religiosas e muitas das manifestações políticas colectivas, de que é triste exemplo a Festa do Avante, que arvoram à categoria de virtude cívica, ou tradicional, ou outra coisa qualquer, a manutenção dessas actividades, como se elas representassem algo mais do que a sua simples manifestação de força, confundindo-a demagogicamente com a própria salvação da Democracia!
Esse mimetismo artificial entre grandes manifestações de massas e a defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo, é um mal disfarçado alibi para excepcionalizar comportamentos de risco
A própria comparação, em pé de igualdade, entre as comemorações do 25 de Abril ou do 1º de Maio, com a Festa do Avante é, no mínimo, altamente tendenciosa e abusiva.
A diferença entre elas é não só de dimensão e de significado, sendo o 1º de Maio de nível planetário e o 25 de Abril a grande Festa portuguesa da Liberdade, não sendo nenhuma delas limitada aos interesses de qualquer Partido, Movimento, interesse particular ou momento político e social.
Isso não implica, obviamente, as necessárias cautelas nos comportamentos de risco. Apostamos nisso as nossas próprias vidas.
A nossa Democracia tem cometido erros, mas o menor não será decerto escamotear a realidade. E a realidade é fundamental para se enfrentar os graves problemas da Humanidade.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020


UM MUNDO INFESTADO DE GÉNIOS
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 27 de Agosto de 2020
A proliferação de governantes autoritários um pouco por todo o mundo diz muito pouco sobre a actual tendência dominante na política internacional, contaminados que estamos pelo surgimento e/ou manutenção de pequenos e grandes ditadores que, não contentes com a nefasta acção das suas políticas populistas, deram agora em génios do pensamento “científico”, opinando tranquilamente sobre as mais diversas matérias com o atrevimento dos ignorantes, como é o caso do aconselhamento de “medicamentos” contra o coronavírus levado a cabo por Trump ou Bolsonaro, sob a forma de autêntica banha da cobra televisiva, com todos os seus ridículos tiques, pouco consentâneos com a gravidade das suas funções.
Desde o famosíssimo aconselhamento da ingestão de lixívia, por Trump, ao de vodka e sauna através do verbo poderoso de Lukashenko, presidente da Bielorrússia – felizmente agora bem apertado por um povo farto de o suportar – sem esquecer o recordista da asneira que perora do alto do Palácio do Planalto em Brasília, aquele que tira e põe a máscara de protecção conforme a disposição do momento enquanto fala da “gripezinha” que infesta o mundo como se de uma dor de dentes se tratasse, ao superpresidente da Rússia que, tal como os seus congéneres atrás mencionados, ensaia os seus recentíssimos “conhecimentos” científicos na própria família, passando por cima de todas as necessárias cautelas a ter com produtos médicos ainda não devidamente ensaiados…
Os outros ditadores ou candidatos a ditador, menos asininos mas não menos perigosos, sufocam tranquilamente os seus respectivos povos com leis antidemocráticas de todo o género, enquanto os reprimem violentamente, mas sempre arvorados em exemplos da liberdade e de progresso, casos da China, da Turquia, da Coreia do Norte, da Venezuela, das Filipinas e mais meia-dúzia deles, que infelizmente incluem algumas potências europeias.
É evidentemente chocante que assim seja, mas a verdade é que as etiquetas que cada um põe a si próprio não me autoriza a garantir a sua maior ou menor “democracia”, muito especialmente dos Estados Unidos da América, estes em queda acentuada devido ao autoritarismo de Trump que, esperamos, venha a ser aniquilado nas próximas eleições, e regressando o país às suas características mais dialogantes.
Mas fora esse caso de alguma esperança, estamos a repetir muitas das condições que conduziram aos conflitos militares do século XX, com ditadores tão férteis em ideias pseudocientíficas como Hitler com as suas sinistras teorias raciais que conduziram ao Holocausto, ou Mussolini com o seu imperialismo “romano”, além das ditaduras de Portugal e da Espanha, do Japão e todos os casos que conduziram ao reforço de uma época negra na História do Mundo.
Também nós, Portugueses, enfrentamos agora o fantasma do populismo perfeitamente artificial, manipulado por demagogos aventureiros e alimentado pelo ressurgimento de uma extrema-direita anticonstitucional, que um governo exemplarmente democrático tem alimentado pela permissividade, enquanto tendências consideradas obsoletas como o racismo, a xenofobia e outras formas radicais de preconceito são alimentadas nas redes ditas sociais, pretexto cada vez mais manifesto para com a criação de perfis falsos iludir a opinião pública sobre a “bondade” de um fascismo que o 25 de Abril apenas enfraqueceu.
Os saudosistas do Estado Novo, quais novos “génios” da ciência política, aí andam a pescar os incautos, ao mesmo tempo que mentem descaradamente sobre os quase 40 anos de desgraça que as actuais gerações felizmente não conheceram e, por isso mesmo são sensíveis à sua propaganda.
Eleições, a verdadeira vacina contra o autoritarismo, reduzirão decerto os perigos que nos ameaçam. E, acima de tudo, a verdade das coisas para combater ambas as epidemias que nos assolam: a pandemia e a mentira!

sábado, 15 de agosto de 2020


DESTRUIÇÃO MACIÇA
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 13 de Agosto de 2020
“Beirute e as armas de destruição maciça à espreita na próxima esquina da incúria”, seria um belo título para a terrível explosão registada há dias no porto de Beirute, com o seu cortejo de vítimas e a destruição da bela capital do Líbano, o velho país de comerciantes e navegadores que na Antiguidade se chamava Fenícia.
No entanto, tratou-se, não de uma explosão nuclear, mas da “simples” reacção química de várias toneladas de nitrato de amónio, composto químico salino usado na agricultura, há vários anos depositado sem controlo, em armazéns do porto de Beirute.
Ou seja, um fertilizante, que decerto também existia no Iraque de Saddam Hussein, como aliás em todos os países intervenientes, poderia ter servido de móbil muito mais consistente para o ataque norte-americano de 2003 àquele país, do que as anunciadas “armas de destruição maciça” que, afinal, se comprovou nunca terem existido…
O ridículo do apoio dos “aliados” às “teses” de Bush não poderia ser maior do que a vergonha que arrastou para cima dos subservientes lacaios dos EUA, Portugal inclusive, na pessoa do seu então Primeiro-ministro, Durão Barroso.
O problema é que o dito nitrato dificilmente poderia ser classificado como “arma”, como acontece com os depósitos de gasolina, gás butano, e outros combustíveis, líquidos ou gasosos de que dependem as economias de todo o mundo, todos eles fortemente explosivos.
Curioso é o facto do Presidente do Líbano, depois do choque manifestado perante as terríveis explosões que lhe destruíram a capital, e da sua alegada e firme decisão de abrir um inquérito impiedoso às responsabilidades pelo ocorrido, vir agora ventilar uma hipótese de a catástrofe ser, não acidental, mas motivada por um atentado através de um míssil ou de uma bomba, abandonando assim a tese do acidente, e embarcando numa hipótese apenas defendida, até então, pela reconhecida argúcia do presidente dos EUA…
Claro que a população de Beirute revolta-se nas ruas, exigindo a demissão do governo, sendo de imediato reprimida impiedosamente pelas forças policiais.
O presidente do Líbano promete agora eleições antecipadas e assistimos à impotência de uma população carente de todos os bens essenciais, sobrevivendo agora num mar de ruínas, e dependente apenas das promessas de um governante inconstante, que tenta desesperadamente salvar a face!

sábado, 8 de agosto de 2020

 CONTRADIÇÕES DA 3ª IDADE

Carlos Rodarte Veloso

“O Templário”, 6 de Agosto de 2020
Ao longo de milénios, a velhice tem sido encarada ora como sinónimo de experiência – e, como tal, valorizada ao ponto de integrar socialmente os corpos dirigentes da comunidade – ora desvalorizada como parte inútil da mesma, ou, simplesmente, como um fardo social.
O nosso tempo actual está dividido entre essas duas concepções extremas, pelo menos no que toca a Portugal: por um lado, a velhice – mais vulgarmente denominada 3ª idade – como um tempo em que as gerações mais idosas continuam a prestar apoio aos mais jovens devido ao cada vez mais difícil acesso a um emprego estável, não apenas sustentando-os, mas mantendo-os na casa familiar, por outro, a ruptura intergeracional, na melhor das hipóteses com a entrega dos idosos a instituições – lares – que os suportem até aos seus derradeiros momentos ou, na pior das hipóteses, o puro e simples abandono dos mesmos em hospitais ou outras instituições afins, situação aliás ilegal quando o internamento não corresponde à situação de doença, mas “apenas” a um alijar de responsabilidades.
Entre estes extremos, assistimos a uma desvalorização dos “maiores” – como lhes chamavam honrosamente no passado e ainda hoje em Espanha – que muitas vezes conduz a abusos e até, a maus tratos, cada vez mais denunciados nas redes sociais.
No entanto, e fugindo a esse extremar de situações, o próprio tratamento dos mais velhos no dia-a-dia corresponde a um conjunto de atitudes paternalistas, que vão desde a infantilização do tratamento, com o predomínio de diminutivos na relação para com eles, quando doentes, mas no próprio contacto informal, abarcando as simples relações comerciais, ou – o que está quase institucionalizado, nas relações entre pessoal de saúde e o “paciente”, denominação essa que diz quase tudo.
Por outro lado, essa atitude de superioridade passa pela redução de todos os doentes a um denominador comum de ignorância total em relação aos assuntos que lhes dizem respeito, quer ao nível médico, quer à simples relação humana.
São raros os técnicos de saúde que “descem” a explicações pormenorizadas sobre a situação de cada doente, como se o pessoal médico e restantes quadros medissem pela mesma bitola todos quantos lhe passam pelas mãos, desvalorizando assim toda a formação que possam – ou não – ter adquirido ao longo da vida, indiferentes a uma possível – e frequente – riqueza de conhecimentos, não poucas vezes superior à deles próprios.
Esta ignorância, por vezes escandalosa, ofende não poucos pacientes, mas é assim que o sistema funciona… lamentavelmente!

quinta-feira, 23 de julho de 2020



O INSUPORTÁVEL PESO DA IGNORÂNCIA
Carlos Rodarte Veloso
“O Templário”, 23 de Julho de 2020
O acesso universal às redes sociais tem contribuído para dar uma falsa ideia da literacia das massas que as utilizam, tanto para opinar sobre a generalidade dos temas abordados, como para uma falsa noção de igualdade dos conhecimentos, que pode equiparar qualquer utente, tenha ele um curso universitário, ou apenas noções básicas – e quantas vezes erróneas – da leitura e da sua interpretação.
Este acesso, que varia de país para país, acaba por ser manipulado, nos regimes ditatoriais, com a “simples” censura ou, mais vulgarmente, com a repressão da liberdade de expressão através sua vigilância através de diversos meios de controlo que alterarão ou, simplesmente, anularão toda a opinião considerada “subversiva” ou, em última análise, o direito de comunicar quaisquer ideias.
Nos países democráticos, como Portugal, onde tais instrumentos repressivos são inaceitáveis – pelo menos teoricamente – assistimos a uma catadupa de opiniões acerca de tudo e mais alguma coisa, dando origem à possibilidade de vários autores repetirem, com nomes diferentes, as mesmas opiniões, acabando por iludir a opinião pública sobre o peso das mesmas.
A esta manipulação política, capaz de alterar os próprios resultados eleitorais, fenómeno dia a dia mais denunciado até a nível internacional, soma-se a confusão aflitiva entre as fontes credíveis baseadas na Ciência, e as opiniões perfeitamente disparatadas acerca de assuntos seriíssimos e há muito tempo estudados, que vão da utilização de vacinas e outros medicamentos – assunto actualmente candente e vital! – às ideias sobre a evolução das espécies, à própria forma da Terra, às interpretações da História Universal, aos problemas ecológicos, nova linha da frente para a sobrevivência da Humanidade…
E enquanto as opiniões se dividem, muitas vezes por mero capricho dos “especialistas” a soldo dos média, que tudo parecem saber, agora crismados de “tudólogos”, somos submersos por uma massa infindável de opinantes que sem sequer ler mais do que os títulos dos artigos, os mimoseiam com “gostos”, “risos”, expressões de “ódio”, etc. decerto não pela concordância com as suas “teses”, mas… porque assim dão a falsa ideia de dominar assuntos de que muitas vezes não fazem a mais pequena ideia.
É ridículo “brilhar” pelas aparências, mas é tão antigo como a espécie humana…
Vanitas vanitatum et omnia vanitas…