domingo, 26 de fevereiro de 2017

OS FAMOSOS SMS

Que as virgens ofendidas com os famosos SMS da CGD digam agora o que é mais importante para Portugal. Bisbilhotar correspondência particular para lixar o melhor Ministro das Finanças que tivemos até hoje - basta ver os resultados! - ou evitar a fuga dos milhares de milhões de euros para paraísos fiscais ou, simplesmente, para o estrangeiro, facilitada por membros do governo do "impoluto" Passos Coelho? Bem se podem esconder atrás dos óculos escuros...

sábado, 25 de fevereiro de 2017


A MULHER NA ARTE - II
Carlos Rodarte Veloso
Publicado n’”O Templário” de 23-2-2017



                Na sequência do artigo anterior, para além da mulher como objecto artístico, outra perspectiva pode igualmente interessar-nos: é a da própria mulher como Artista, como Criadora. Para começar, como artesã dos chamados lavores femininos, tanto entre as classes altas como entre as laboriosas, mais uma forma de passar o tempo do que uma actividade altamente prestigiada entre as mulheres ricas, embora rentável e valorizada economicamente nas classes trabalhadoras.
                Mas é nas Belas-Artes que sobressaem, embora num número chocantemente diminuto, alguns talentos, especialmente a partir da época barroca: Artemisia Gentileschi, italiana, e Josefa d’Ayala, mais conhecida como Josefa de Óbidos, em Portugal, além de algumas freiras pintoras em conventos.
                O caso de Artemisia Gentileschi é especialmente interessante. Filha de um pintor de razoável notoriedade, Orazio Gentileschi, uma das suas obras mais significativas representa a decapitação de Holofernes pela heroína judaica, Judite, tema bíblico bastante popular em todas as épocas, que representa uma das raras mulheres que ultrapassam a sua condição de inferioridade ao vencer um tirano sanguinário valendo-se apenas da sedução e, só no final, da violência mais brutal. Esta obra é produzida “a quente”, na sequência da violação da jovem pintora, cuja queixa junto das autoridades romanas é recebida com ironia e sem quaisquer efeitos legais. Nasce assim o quadro provavelmente mais catártico da História da Arte (Fig. 1 – “Judite e Holofernes” de Artemisia Gentileschi).
                O caso de Josefa de Óbidos, pintora muito próxima da vida conventual portuguesa, filha também de pintor, neste caso de “bodegones” – nome espanhol para “naturezas mortas” – está marcado pela devoção religiosa e alguma ingenuidade no tratamento dos temas, que tanto podem ser as imagens do Menino Jesus ou outras devocionais que povoavam essas casa religiosas, como riquíssimas naturezas mortas”, com doces, frutos e outras guloseimas também abundantes nesses locais e que antecipam as futuras especialidades gastronómicas que tanta fama têm trazido a Portugal (Fig. 2 – “Natureza morta” de Josefa de Óbidos).
Com a evolução artística, novas artistas surgem, lutando por um lugar ao sol perante a supremacia masculina. Em vésperas da Revolução Francesa, Elisabeth Vigée Le Brun, pintora da Corte de Maria Antonieta, que conseguiu sobreviver à sua patrona, era uma excelente retratista, com rara sensibilidade (Fig. 3 – “Auto-Retrato” de Elisabeth Vigée Le Brun).
                A partir do final do século XIX, novas artistas se notabilizam como Camille Claudel, discípula, companheira e rival de Rodin (Fig. 4 – “Pensamento profundo” de Camille Claudel), e Berthe Morisot, pintora impressionista.

Em Portugal, Aurélia de Souza conjuga o Naturalismo com correntes mais vanguardistas e a discípula de Malhoa, Maria de Lourdes de Mello e Castro, de Tomar, arrasta o Naturalismo até meados do século XX, num conservadorismo bem fiel às lições do seu mestre.

 

Tamara de Lempika e Claire Colinet, na primeira metade do século XX, representam o movimento Arte Déco, e Frieda Kahlo, mais que o Surrealismo em que não se revia, o Realismo Fantástico, em paralelo com a Literatura latino-americana contemporânea.
A partir de meados do século XX, Sónia Delaunay e Maria Helena Vieira da Silva são excelentes representantes do Abstraccionismo. Outro nome grande da arte portuguesa e mundial dos séculos XX e XXI é o de Paula Rego, por muitos considerada a maior pintora viva.

Os dois últimos séculos são, assim, bem representativos da entrada de numerosas artistas no panorama artístico mundial, sem qualquer diminuição relativamente aos seus pares masculinos.




quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017


DO CARPE DIEM À VANITAS
Carlos Rodarte Veloso
(Publicado no Correio Transmontano em 22 de Fevereiro de 2017)

A imagem é fundamental na interpretação das artes visuais, embora os mesmos temas possam ter interpretações diametralmente opostas consoante as épocas em que são produzidos e as ideologias então dominantes.
Um dos casos mais interessantes pelo seu contraste, é o das representações de caveiras ou, mesmo, esqueletos, que são conhecidas desde a Antiguidade como avisos para as consequências das formas de comportamento humanas. Um mosaico de Antioquia com c. 2400 anos mostra um esqueleto reclinado informado, tal como numa banda desenhada moderna, pela frase em Grego, “seja feliz, aproveite a vida” (fig. 1).
Também na Antiga Roma, a representação de grupos de esqueletos a dançar, ou caveiras acompanhadas de objectos que simbolizam a efemeridade da vida, são convites ao “carpe diem”, isto é, ao gozo dos prazeres dos sentidos, isto é, da vida, antes que a morte tudo venha destruir. Há aqui um convite ao prazer, de forma alguma considerado pecaminoso na cultura romana pagã. Assim, o mais célebre dos vestígios dessa ideologia da sensualidade, claramente epicurista, está representada numa luxuosa taça de prata esculpida com esqueletos dançantes, destinada ao vinho e encontrada nas ruínas da villa de Boscoreale, próximo de Pompeia e, tal como a cidade do Vesúvio, destruída durante a erupção do ano 79 d.C. (fig.2).
Com o triunfo do Cristianismo e sua recusa sectária do prazer, a arte medieval passa a englobar mensagens cuja forma, sendo semelhante à da Antiguidade – esqueletos dançantes, e/ou caveiras associadas a relógios, livros, objectos de luxo – remete para recusa pura e simples do prazer, única forma considerada segura de evitar a danação eterna, o Inferno. Agora esta figuração macabra aponta para as coisas vãs da vida – a “vãdade”, ou seja, a vaidade a que chamam Vanitas – e tem o seu triunfo a partir 1347, quando a Peste Negra começa a assolar a Europa.
As cenas que antes convidavam ao prazer, são agora denominadas “danças macabras”, arrastando num turbilhão infernal humildes e poderosos, reis e papas, guerreiros e todas as classes sociais e sexos (fig. 3). Essa associação entre a Morte e o Poder não poderia ser mais transparente do que no quadro de Holbein, “Os Embaixadores” que ostenta, em primeiro plano, uma anamorfose – imagem disfarçada e deformada  – da Vanitas (fig. 4). Em segundo plano, os símbolos do Poder, da Ciência e das Artes, como se vê armadilhas para perder as pobres almas dos pecadores, neste caso poderosos senhores...
Outros exemplos se poderão apontar, uns mais macabros, outros menos, mas o século XVII, época de contínuas guerras religiosas é especialmente elucidativo. O quadro de Valdés Leal “In ictu oculi”, num piscar de olhos (fig. 5), é um bom representante dessa tendência.
As “capelas de ossos” já antes apresentadas nestas páginas, são matéria abundante da condenação da Vanitas, embora especialmente votadas aos espaços religiosos monacais. Apresentamos aqui um pormenor da Capela de Ossos de Campo Maior (fig. 6).






quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017


A MULHER NA ARTE - I
Carlos Rodarte Veloso
Publicado n’”O Templário” de 16-2-2017





                A Arte, para além do processo criativo que representa, transmite, frequentemente, mensagens cifradas que veiculam padrões de pensamento e de comportamento dos seus autores e da época em que viveram. O estudo dessas imagens, a Iconografia, e dos seus vários níveis de significado, a Iconologia, não são ciências exactas. Embora muitos dos símbolos que fazem parte do código utilizado ainda hoje se mantenham actuais, outros têm agora um significado muito diferente daquele que tinham na época em que  foram produzidos, que só podemos apreender — quando isso é possível — através do estudo da história e da evolução das mentalidades.
                A sociedade dominada pelo poder masculino sempre mostrou uma tendência, que se agravou com o tempo, de retirar à mulher toda e qualquer capacidade de actuar sobre o mundo exterior à família. À mulher, ser criador por excelência, restavam a procriação e as actividades artesanais domésticas, únicas funções vedadas ao sexo masculino, a primeira por motivos biológicos, as outras por interdito social …
                Não podendo ser habitualmente agente das artes ditas “maiores”, a mulher torna-se, em todo o mundo, o motivo inspirador de gerações de artistas e escritores, que nela exaltam o “eterno feminino”. Em pintura ou escultura, em busto ou em corpo inteiro, ricamente vestida ou desnudada, ela é rainha ou camponesa, santa ou pecadora, deusa ou mulher comum, muitas vezes simples alegoria, quase sempre símbolo de beleza mas, por vezes, da fealdade mais repugnante…
                A maneira de encarar a mulher ao longo do tempo não se modificou significativamente senão na Alta Idade Média e nas últimas décadas do século XX. Por isso tem um interesse muito especial, para entendermos essa lentíssima evolução do pensamento, o estudo das obras de arte que integram figuras femininas. Por outras palavras, a Iconografia feminina.
                Depois dos primeiros séculos da Antiguidade e de uma evolução lenta mas sólida da representação humana (Fig. 1 – “Jovem leitora” - cópia romana de estatueta helenística), a Alta Idade Média,  ao desprezar o corpo humano, como “porta do demónio”, do mesmo modo desvaloriza a beleza humana, especialmente a feminina, regressando a formas de representação totalmente arcaicas.
                Com a Baixa Idade Média e, especialmente, o Renascimento (Fig. 2 – “Nascimento de Vénus” de Botticelli) e outras correntes apontando o caminho ao realismo e ao naturalismo, assiste-se à produção de obras-primas de enormíssima qualidade, tendência que se mantém até ao final do século XIX (Fig. 3 – “Madonna do Loreto” de Caravaggio).
                O século XX, com o aparecimento de uma número impressionante de novas correntes artísticas, na maioria com tendência para novas perspectivas da representação da realidade, vai alterar todos os dados estéticos até então em vigor (Fig. 4 – “Les Demoiselles d’Avignon” de Pablo Picasso). O abstraccionismo representa o último (?) passo nesta fuga deliberada a qualquer identificação entre a Arte e a Natureza.

                Isso não impede que se mantenha, em muitos artistas, para além das modas, muito do ideal que norteou a busca da beleza – ou do seu contrário – desde tempos imemoriais.

domingo, 12 de fevereiro de 2017



MONTESINHO, TRÁS-OS-MONTES
Carlos Rodarte Veloso
(Publicado na “Correio Transmontano”, 12-2-2017)

Já conhecia Trás-os-Montes quando, no final de Agosto de 2000 visitei o Parque Natural de Montesinho. Sabia que era parte da Terra Fria Transmontana e o alojamento, com duche frio, não me deixou dúvidas a esse respeito, apesar de ser Verão, um Verão quente que proporcionou alguns incêndios nesta região privilegiada pela abundância de castanheiros, o melhor da flora nativa portuguesa.
Sem pretender traçar um itinerário turístico desta região que visitei em apenas dois dias, quero deixar aqui uma refeência muito especial à aldeia de Cova da Lua, nome desde logo apetitoso  pelas sugestões pagãs que invoca mas, principalmente, pela beleza da paisagem e a presença, no espaço de uma aldeia então ainda bastante intocada – espero que assim continue – de diversos elementos tradicionais ainda conservados, desde os pombais em ferradura típicos do Noroeste português, ao lagar de azeite artesanal, ainda bem conservado e funcional.
A pequena Igreja de Nossa Senhora da Hera, é outro elemento de interesse, associado à própria tipologia da casa transmontana que aqui abunda, com as suas paredes graníticas, cuja textura convida a um exame atento e à admiração por um trabalho ancestral que marcou profundamente a paisagem local.















               


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017


ICONOGRAFIA DO ÍNDIO BRASILEIRO NA
 ARTE QUINHENTISTA PORTUGUESA
Carlos Rodarte Veloso

Publicado n' "O Templário” de 9-2-2017

                A odisseia dos Descobrimentos portugueses, ainda hoje bem viva no imaginário português, marcou profundamente os espíritos da época e, assim, os seus artistas. Pondo de parte as influências marítimas que alguns autores pensaram detectar no estilo Manuelino numerosos vestígios iconográficos foram deixados na arte quatrocentista e quinhentista portuguesa revelando o assombro que esse encontro de culturas provocou nos ânimos mais criativos. Foi preciso rever numerosos conceitos tradicionais para enquadrar os novos conhecimentos — ainda empíricos — que chegavam em catadupa: novas terras exigiam uma nova Geografia, novas plantas e novos animais pediam nova Botânica e nova Zoologia, mas acima de tudo, as novas Gentes, agora desmitificadas, exigiam uma autêntica revolução mental, ainda hoje por completar… Não nos competindo um fácil juízo de valor sobre tais insuficiências poderemos, no entanto, reconhecer o quanto a descoberta do outro marcou desde então as Artes e as Letras.
                Os povos africanos e asiáticos eram já “conhecidos” dos europeus, ou directamente, nas “áreas de contacto” — Norte de África e Próximo Oriente —, ou através de toda uma tradição nascida dos relatos de viagens, tendo como paradigma o célebre Livro de Marco Polo.  Esses relatos, por muito objectivos que parecessem, incluíam sempre descrições fantasiosas obtidas “em segunda mão” e, por isso, não é de admirar que, a par de informações fidedignas, se descrevessem seres monstruosos e com monstruosos hábitos habitando as zonas ainda não atingidas pelos europeus, assim nascendo uma autêntica mitologia das terras remotas. Mas, à medida que as quilhas das naus iam avançando, a realidade revelava-se em todo o seu esplendor, ultrapassando por vezes as mais loucas suposições, com uma só — e importante — restrição: independentemente da cor da pele ou dos costumes, os povos que foram sendo “descobertos” pertenciam única e exclusivamente a uma espécie, a humana… Essa constatação não impediu, como sabemos, todo o cortejo de horrores trazidos pelo domínio colonial, e essa pesada herança ainda hoje envenena as relações entre os povos e, como bem sabemos, o seu próprio viver na actualidade…
                Relativamente aos povos da América, o caso era bem diferente. Sendo incerto que as viagens dos normandos tivessem deixado memória efectiva entre os europeus, o Novo Mundo era apenas imaginado em cartas representando fantasiosos arquipélagos ou ilhas isoladas espalhadas pelo Atlântico ocidental, cujos nomes míticos — “Antilia”, “Sete Cidades”, “Himadoro”, “Ymana”, “Satanazes”, “Seluaga”, “Brasil” …—, foram, nalguns casos, mais tarde aproveitados para baptizar terras bem reais…
                A presença de figuras humanas desnudas, cobertas de folhas ou de peles, como “tenentes” heráldicos, ou entre a decoração esculpida de obras góticas, tardo-góticas e renascentistas existentes em Portugal, levou alguns investigadores a considerá-las consequência directa da expansão marítima. Em Tomar, no Convento de Cristo, estão representados nada menos do que dezasseis casais. No entanto, a verdade é que tais representações se integram numa velha tradição artística europeia, a dos “homens selvagens” e dos “homens silvestres”— os primeiros, vestidos com peles, como podemos ver no retábulo-mor da Sé Velha de Coimbra, trabalho dos entalhadores flamengos Olivier de Gand e Jean d’Ypres (Fig. 1), os outros, com folhas — “arquétipo mítico por excelência, que povoara a imaginação medieval”. Estas criaturas são contraditórias por excelência, pois tanto podem representar os instintos primários, animalescos, as forças cegas da natureza — o Caos — anteriores ao Cristianismo como força organizadora e civilizatória do mundo — assim tornado Cosmos —, como uma alternativa válida para os males da civilização, convidando a uma aproximação à natureza e a um certo primitivismo — hoje diríamos “ecologista” — defendido por novas doutrinas filiadas no mito da “Idade do Ouro”, provavelmente na origem do mito do “bom selvagem”.
                A primeira das fontes iconográficas que explicitamente representam os índios do Brasil é a cartografia, onde imagens exóticas mas nem por isso menos expressivas, representam, além de fauna e flora nativas, índios nus em trabalhos diversos, com um realismo que só se pode dever à observação directa ou ao testemunho de navegadores encontrando-se, contudo, nestas últimas, representações altamente fantasiosas de um aldeamento e de cenas de antropofagia, em que é nítida a intromissão da ideologia que então se construía, relativamente ao “selvagem” da América do Sul. Estas referências gráficas estão em consonância com “descrições” desde o início do século XVI divulgadas pela Europa, com possível origem numa carta de Américo Vespúcio a Lourenço de Médicis — Mundus Novus —, narrando costumes canibais de uma brutalidade e vulgaridade em nada correspondentes ao canibalismo ritual na verdade praticado pelos índios brasileiros.     Também em pinturas de gosto já renascentista posteriores à descoberta do Brasil, nos poucos casos chegados aos nossos dias, se detecta grande dissonância relativamente aos sentimentos despertados nos respectivos artistas.
                Assim, na Adoração dos Magos  (Fig. 2) de Vasco Fernandes, de cerca de 1502, o rei mago negro, tradicionalmente designado como Baltasar, é substituído por um índio brasileiro tupinambá adornado com traje de folhas e coberto com o respectivo cocar emplumado “no que será a primeira representação europeia de um aborígene americano claramente  conotado com a simbologia benfazeja dos povos pré-diluvianos desprovidos de Pecado Original, numa posição bem humanística”, no dizer de Vítor Serrão. No Calvário do mesmo artista, pintado c.1535-40 (Fig. 3), o Bom Ladrão é representado com feições e cabeleira que o identificam inequivocamente como um índio brasileiro, “numa nova reinterpretação humanística dos povos recém colonizados pelas Descobertas ligados a um sentido evangélico do Bem”. Em ambos os casos, como é óbvio, a imagem do Índio encontra-se identificada com o Bem.
                Já no famoso Inferno  do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa (Fig. 4), pintado c.1515 por Jorge Afonso, surge um índio brasileiro reconhecível pelos seus atavios tradicionais, a presidir ao suplício dos condenados na qualidade do próprio rei dos Infernos, enquanto um outro diabo também vestido com penas multicolores, transporta às costas um frade luxurioso!…
                Um longo caminho fora percorrido desde que a Carta  de Pero Vaz de Caminha abrira as mais animadoras perspectivas, nas relações entre os Portugueses e Ameríndios, apresentados estes na sua simplicidade total, na sua inocência mais transparente, livres ainda do próprio pecado original, num paraíso perdido… Navegadores e Jesuítas alimentaram desde logo essa ideia idílica, mais tarde institucionalizada no quadro do Iluminismo pelo mito do “bom selvagem”, terreno virgem para a sementeira da Fé. O próprio Caminha expressa essa ideia: “Parece-me gente de tal inocência que, se os homem entendesse e eles a nós, que seriam logo cristãos, porque eles nem entendem em nenhuma crença, segundo parece.”
                Embora esta última suposição não correspondesse à verdade, a Igreja jogou forte no Gentio brasileiro: em 1537, Paulo III reconhecia a racionalidade e a habilitação destes “selvagens” para a Fé católica, não admitindo que eles fossem privados da liberdade. Nascia assim a questão que desde então opôs a Igreja, especialmente representada neste particular pela Companhia de Jesus, aos colonos, os quais não concebiam sequer a hipótese de se verem assim privados de tão grande número de potenciais escravos. Este conflito viria a arrastar-se, penosamente, até ao consulado de Pombal.
                Os interesses dos colonos, interessados em tirar o apoio da Igreja a esta mão-de-obra tão apetecível para as suas plantações, assim como a literatura europeia que, como vimos, desde cedo manifestou interesse na exploração e manipulação dos aspectos mais abomináveis atribuídos aos “selvagens” ameríndios, contribuíram para diabolizar os nativos do Novo Mundo e, assim, pôr em confronto com as teses — também não verdadeiras —dos seus defensores, as mais infamantes deturpações de uma cultura com demasiadas diferenças em relação à da “civilizada” Europa…




         




segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017


AS CAPELAS DE OSSOS EM PORTUGAL
Carlos Rodarte Veloso

Publicado na Correio Transmontano, 5 de Fevereiro de 2017

  
                Pode não parecer muito convencional  instituir em obra de arte as “capelas de ossos”, espaços sacros revestidos com ossos humanos, as caveiras militarmente enfileiradas, alternando em arranjos rítmicos de tíbias, úmeros, fémures, de lado ou de topo, em filas ou em colunas,  submergindo o incauto observador num vórtice de horror.

                Não será argumento aceitável o terem sido utilizados elementos naturais — os ossos humanos — na sua construção. Uma coisa é a disposição natural de elementos naturais — como o serão as rochas que constituem a célebre “Cabeça da Velha”, na Serra da Estrela — e outra, muito diferente, a disposição artificial dos mesmos elementos naturais formando um dólmen, por exemplo: aí existem  “modificações intencionais que o espírito humano imprime em objectos da natureza”, como refere Raymond Bayer… e é isso exactamente que se passa em todos os monumentos cujo material de base são os últimos dos despojos humanos, os ossos. Dos mais simples carneiros  — os ossários medievais — às capelas de ossos  propriamente ditas, todo o cenário  assim organizado  tem um propósito implícito: a contemplação dos ossos , símbolo da transitoriedade das coisas terrenas, convite à oração pelas Almas do Purgatório  e à reflexão sobre a hora mortis .
                Falei em cenário e essa referência remete-nos para o universo das atitudes humanas perante a morte e das mentalidades que as geraram: o teatro, o espectáculo, prenúncio do Barroco bem presente no riso sinistro da caveira da vanitas  romana, ou dos túmulos de diferentes épocas, na dança macabra  medieval, ou nos repugnantes jacentes dos séculos XIV e XV, representando, em todo o seu horror, a decomposição do cadáver, símbolo acabado da impureza que a morte traz…
                Falei em oração pelas Almas do Purgatório  e logo me ocorre toda a problemática  da introdução do Purgatório no imaginário cristão, depois de séculos marcados a fogo pelo dualismo Paraíso-Inferno, tema caro a grandes nomes da actual historiografia, como Jacques Le Goff, e cuja importância foi tão expressivamente vincada por Chaunu. Logo me ocorre ainda a espontaneidade e o vigor do culto popular das Alminhas  e de todas as Confrarias que lhes prestaram culto no nosso País, e de que todas as capelas de ossos parece terem sido sede.
                É num contexto pré-barroco que são construídas as primeiras capelas de ossos em Portugal, havendo também pelo menos um exemplo espanhol, a capela de ossos de Wamba, próximo de Valladolid, pelo menos duas em Itália e outras em diversos países da Europa Central.
                Quanto ao levantamento destas capelas em Portugal, parecem bastante promissores os resultados obtidos. De momento, podemos referir, globalmente, as seguintes capelas portuguesas: a de Santa Cruz de Coimbra, quinhentista, e  as de Elvas e do Porto, todas desaparecidas, a de S. Francisco de Évora, a mais célebre, as de Campo Maior, Monforte, Lagos, Alcantarilha (Silves), Pechão (Olhão) e as duas de Faro. Onze ao todo, apenas duas delas situadas a norte do Tejo. As ainda existentes podem agrupar-se, tipologicamente, em duas grandes regiões: a do Alentejo e a do Algarve. As primeiras são menos elaboradas do ponto de vista decorativo, mais “pesadas” — leia-se barrocas — devido a um verdadeiro “horror ao vazio”, contando com o exemplo mais espectacular, o de Évora. As capelas algarvias apostam numa maior delicadeza decorativa, buscando reduzir as ossadas a ornatos mais ou menos “inocentes” — leia-se, “disfarçados” —, o que as identifica, formal e cronologicamente, com o rococó.
                O caso da capela de Coimbra, pretensamente constituída pelos ossos dos cristãos tombados no campo da mítica batalha de Ourique, é extremamente interessante, não só por a sua antiguidade situar a respectiva construção entre 1533 e 1541, mas pela ligação perfeitamente evidente que é estabelecida, desde o primeiro momento, entre a dita capela e um autêntico culto da figura de D. Afonso Henriques levada a cabo pelos frades Crúzios e que tudo tentaram junto de D. João III, e deste junto da Santa Sé, para se obter a canonização do nosso primeiro rei…
Como se vê, não são poucas as reflexões suscitadas por estas pobres construções, ainda pouco conhecidas — a capela de ossos da Igreja de S. Sebastião de Lagos é até desconhecida de muitos dos seus vizinhos mais próximos! — e menos estudadas ainda.  Desprezadas pelos poderes públicos, é o culto popular das Almas do Purgatório, associado a uma certa curiosidade mórbida dos turistas, que as vai mantendo de pé. A capela de ossos de Évora é o monumento mais visitado de Évora, apenas a par, talvez, do Templo de Diana, de que não há, obviamente, registo das visitas.
Legendas:   Fig. 1 – Entrada na Capela de Ossos da Igreja de S. Francisco, Évora
                    Fig. 2 – Capela de Ossos da Igreja de S. Francisco, Évora
                    Fig. 3 – Capela de Ossos de Campo Maior
                    Fig. 4 – Capela de Ossos da Igreja do Carmo, Faro
                    Fig. 5 – Capela de Ossos de Alcantarilha, Silves









quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017


IDENTIDADE NACIONAL E GLOBALIZAÇÃO
Carlos Rodarte Veloso

Publicado n’”O Templário” de 2-2-2017


                 Vivemos um tempo em que muito do que antes parecia certo e imutável se tornou instável e discutível e entram nesse rol de incertezas coisas consideradas tão solidamente implantadas como as noções de Soberania e Independência Nacionais.                    E não é um acaso falar destas realidades num momento em que uma muito inculta “cultura de massas” ou “cultura Coca-Cola”, se pretende substituir às diferenças que distinguem uma comunidade de outra comunidade. A normalização que o triunfo desse conceito constitui, não representa — ao contrário do que o senso comum parece sugerir — uma vitória da Democracia como ela é entendida em termos sociais e políticos mas, pelo contrário, o fim de um mundo diversificado e colorido em que, pensava-se há poucos anos, todas as culturas começavam, finalmente, a caminhar para um convívio igualitário, pacífico e despreconceituoso… para um Futuro!
                 Em contra-corrente, os actuais movimentos políticos xenófobos e ultra-nacionalistas, de que Donald Trump, Putin e Marine Le Pen são claros epítomes, hipervalorizam essas diferenças, mas de um ponto de vista completamente contrário a esse convívio, encerrando o Futuro numa redoma forrada de muros e arame farpado, de hostilidade e de agressividade, mostrando um horizonte recheado de perigos e guerras intermináveis.
                 Por isso mesmo e cada vez mais, o último reduto da Identidade Nacional, aquilo que nos diferencia dos Outros e nos identifica como Portugueses, mas sem diabolizar o Outro, sem nos valorizar à custa da diminuição do Diferente, encontra-se na riqueza de um património cultural muito nosso, que aprendeu a conviver com outras culturas, muitas vezes não pacificamente, é certo, mas de uma forma geralmente inclusiva, muito ao contrário do que que se passou com outras hegemonias ocidentais. Cabe-nos, pois, defender esse legado imemorial, aperfeiçoá-lo, dá-lo a conhecer aos vindouros e utilizá-lo como a bandeira da nossa identidade e, assim, da nossa Cultura.
                 Nada do que é humano é alheio à Cultura. Portanto, a própria atitude anti-cultural que muitos tomam, por pensar que a cultura não lhes serve para nada, é também — por muito que lhes pese… — uma atitude cultural, já que corresponde a uma ideologia utilitarista, oportunista, se o preferirem…
                 Essas pessoas não compreendem que a própria ideia de Progresso, de um certo progresso que decerto aprovam, quanto mais não seja porque as suas realizações materiais lhes são úteis, é um dado cultural da maior importância e que pode ser encarado tanto de uma forma puramente material, como espiritual. Geralmente preferem-lhe a Tradição, esquecendo que essa mesma tradição é um pau de dois bicos, que tanto convoca os valores mais elevados da Humanidade, como os mais baixos, vindos de tempos obscuros e irracionais, de “Idades das Trevas, como têm sido classificados.
                 A ideia de património cultural está, portanto, intimamente associada à ideia de herança cultural ou seja, o elo de união entre as gerações, mesmo separadas por séculos ou milénios. Isto quer dizer que o povo português tem mantido, através dos tempos, certas características próprias, exteriorizadas através de atitudes, símbolos e formas de expressão — a língua é uma delas, e a mais importante — que permitem identificá-lo entre muitos outros, apesar das naturais semelhanças entre todos os povos.
                 A proximidade desse passado, tão presente ainda nas águas do rio, sempre em movimento mas sempre renovadas, por vezes movendo ainda os seus moinhos ou inundando as margens, nos altos perfis de montanhas, sentinelas de agora e de sempre, nas infindas planuras, mudas testemunhas de secas e batalhas, procissões e incêndios, no campanário da matriz, retinindo ao longe, como no ano da Peste, no anúncio das bodas do Príncipe ou no último auto-de-fé, traz-nos os ecos dessa vida passada que plantou raízes na nossa memória colectiva.
                 Neste sítio, mais coisa menos coisa, naufragou um navio que vinha das Índias, carregado de ouro e de escravos. O ouro foi procurado e em parte recuperado, os escravos sobreviventes, escravos continuaram, mas a população ajudou os tripulantes salvos das águas, com eles partilhou as suas humildes casas, a cama e a comida. Ganância, opressão e humanidade, as faces díspares da humanidade, num só momento… A história local é o instantâneo vívido, o corte no devir, o momento e o sítio exactos. Depois, o local regressa à obscuridade, até que outro naufrágio, uma pesca milagrosa, um maremoto, o relança no mundo. Mas é também o longo e obscuro percurso de uma comunidade presa na máquina implacável da “grande história”, tornando-a, contudo, credível, humana…

                 É o somatório das histórias locais que perfaz o todo em que nos inserimos, a nossa razão de existir como ser colectivo. Estou a falar de uma história feita de estórias, estou a falar de gente. Gente individual e gente colectiva, interagindo no seu meio, mas projectando-se também num exterior que poderia não passar do horizonte mais próximo… ou atingir os confins do mundo, atingir as estrelas! Em vez da apagada e vil tristeza que induz ao egoísmo, ­à desumanidade.