DO CARPE DIEM À VANITAS
Carlos Rodarte Veloso
(Publicado no Correio Transmontano em 22 de Fevereiro de 2017)
A imagem é fundamental na interpretação das artes visuais, embora os mesmos temas possam ter interpretações diametralmente opostas consoante as épocas em que são produzidos e as ideologias então dominantes.
Um dos casos mais interessantes pelo seu contraste, é o das representações de caveiras ou, mesmo, esqueletos, que são conhecidas desde a Antiguidade como avisos para as consequências das formas de comportamento humanas. Um mosaico de Antioquia com c. 2400 anos mostra um esqueleto reclinado informado, tal como numa banda desenhada moderna, pela frase em Grego, “seja feliz, aproveite a vida” (fig. 1).
Também na Antiga Roma, a representação de grupos de esqueletos a dançar, ou caveiras acompanhadas de objectos que simbolizam a efemeridade da vida, são convites ao “carpe diem”, isto é, ao gozo dos prazeres dos sentidos, isto é, da vida, antes que a morte tudo venha destruir. Há aqui um convite ao prazer, de forma alguma considerado pecaminoso na cultura romana pagã. Assim, o mais célebre dos vestígios dessa ideologia da sensualidade, claramente epicurista, está representada numa luxuosa taça de prata esculpida com esqueletos dançantes, destinada ao vinho e encontrada nas ruínas da villa de Boscoreale, próximo de Pompeia e, tal como a cidade do Vesúvio, destruída durante a erupção do ano 79 d.C. (fig.2).
Com o triunfo do Cristianismo e sua recusa sectária do prazer, a arte medieval passa a englobar mensagens cuja forma, sendo semelhante à da Antiguidade – esqueletos dançantes, e/ou caveiras associadas a relógios, livros, objectos de luxo – remete para recusa pura e simples do prazer, única forma considerada segura de evitar a danação eterna, o Inferno. Agora esta figuração macabra aponta para as coisas vãs da vida – a “vãdade”, ou seja, a vaidade a que chamam Vanitas – e tem o seu triunfo a partir 1347, quando a Peste Negra começa a assolar a Europa.
As cenas que antes convidavam ao prazer, são agora denominadas “danças macabras”, arrastando num turbilhão infernal humildes e poderosos, reis e papas, guerreiros e todas as classes sociais e sexos (fig. 3). Essa associação entre a Morte e o Poder não poderia ser mais transparente do que no quadro de Holbein, “Os Embaixadores” que ostenta, em primeiro plano, uma anamorfose – imagem disfarçada e deformada – da Vanitas (fig. 4). Em segundo plano, os símbolos do Poder, da Ciência e das Artes, como se vê armadilhas para perder as pobres almas dos pecadores, neste caso poderosos senhores...
Outros exemplos se poderão apontar, uns mais macabros, outros menos, mas o século XVII, época de contínuas guerras religiosas é especialmente elucidativo. O quadro de Valdés Leal “In ictu oculi”, num piscar de olhos (fig. 5), é um bom representante dessa tendência.
As “capelas de ossos” já antes apresentadas nestas páginas, são matéria abundante da condenação da Vanitas, embora especialmente votadas aos espaços religiosos monacais. Apresentamos aqui um pormenor da Capela de Ossos de Campo Maior (fig. 6).
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