segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017


AS CAPELAS DE OSSOS EM PORTUGAL
Carlos Rodarte Veloso

Publicado na Correio Transmontano, 5 de Fevereiro de 2017

  
                Pode não parecer muito convencional  instituir em obra de arte as “capelas de ossos”, espaços sacros revestidos com ossos humanos, as caveiras militarmente enfileiradas, alternando em arranjos rítmicos de tíbias, úmeros, fémures, de lado ou de topo, em filas ou em colunas,  submergindo o incauto observador num vórtice de horror.

                Não será argumento aceitável o terem sido utilizados elementos naturais — os ossos humanos — na sua construção. Uma coisa é a disposição natural de elementos naturais — como o serão as rochas que constituem a célebre “Cabeça da Velha”, na Serra da Estrela — e outra, muito diferente, a disposição artificial dos mesmos elementos naturais formando um dólmen, por exemplo: aí existem  “modificações intencionais que o espírito humano imprime em objectos da natureza”, como refere Raymond Bayer… e é isso exactamente que se passa em todos os monumentos cujo material de base são os últimos dos despojos humanos, os ossos. Dos mais simples carneiros  — os ossários medievais — às capelas de ossos  propriamente ditas, todo o cenário  assim organizado  tem um propósito implícito: a contemplação dos ossos , símbolo da transitoriedade das coisas terrenas, convite à oração pelas Almas do Purgatório  e à reflexão sobre a hora mortis .
                Falei em cenário e essa referência remete-nos para o universo das atitudes humanas perante a morte e das mentalidades que as geraram: o teatro, o espectáculo, prenúncio do Barroco bem presente no riso sinistro da caveira da vanitas  romana, ou dos túmulos de diferentes épocas, na dança macabra  medieval, ou nos repugnantes jacentes dos séculos XIV e XV, representando, em todo o seu horror, a decomposição do cadáver, símbolo acabado da impureza que a morte traz…
                Falei em oração pelas Almas do Purgatório  e logo me ocorre toda a problemática  da introdução do Purgatório no imaginário cristão, depois de séculos marcados a fogo pelo dualismo Paraíso-Inferno, tema caro a grandes nomes da actual historiografia, como Jacques Le Goff, e cuja importância foi tão expressivamente vincada por Chaunu. Logo me ocorre ainda a espontaneidade e o vigor do culto popular das Alminhas  e de todas as Confrarias que lhes prestaram culto no nosso País, e de que todas as capelas de ossos parece terem sido sede.
                É num contexto pré-barroco que são construídas as primeiras capelas de ossos em Portugal, havendo também pelo menos um exemplo espanhol, a capela de ossos de Wamba, próximo de Valladolid, pelo menos duas em Itália e outras em diversos países da Europa Central.
                Quanto ao levantamento destas capelas em Portugal, parecem bastante promissores os resultados obtidos. De momento, podemos referir, globalmente, as seguintes capelas portuguesas: a de Santa Cruz de Coimbra, quinhentista, e  as de Elvas e do Porto, todas desaparecidas, a de S. Francisco de Évora, a mais célebre, as de Campo Maior, Monforte, Lagos, Alcantarilha (Silves), Pechão (Olhão) e as duas de Faro. Onze ao todo, apenas duas delas situadas a norte do Tejo. As ainda existentes podem agrupar-se, tipologicamente, em duas grandes regiões: a do Alentejo e a do Algarve. As primeiras são menos elaboradas do ponto de vista decorativo, mais “pesadas” — leia-se barrocas — devido a um verdadeiro “horror ao vazio”, contando com o exemplo mais espectacular, o de Évora. As capelas algarvias apostam numa maior delicadeza decorativa, buscando reduzir as ossadas a ornatos mais ou menos “inocentes” — leia-se, “disfarçados” —, o que as identifica, formal e cronologicamente, com o rococó.
                O caso da capela de Coimbra, pretensamente constituída pelos ossos dos cristãos tombados no campo da mítica batalha de Ourique, é extremamente interessante, não só por a sua antiguidade situar a respectiva construção entre 1533 e 1541, mas pela ligação perfeitamente evidente que é estabelecida, desde o primeiro momento, entre a dita capela e um autêntico culto da figura de D. Afonso Henriques levada a cabo pelos frades Crúzios e que tudo tentaram junto de D. João III, e deste junto da Santa Sé, para se obter a canonização do nosso primeiro rei…
Como se vê, não são poucas as reflexões suscitadas por estas pobres construções, ainda pouco conhecidas — a capela de ossos da Igreja de S. Sebastião de Lagos é até desconhecida de muitos dos seus vizinhos mais próximos! — e menos estudadas ainda.  Desprezadas pelos poderes públicos, é o culto popular das Almas do Purgatório, associado a uma certa curiosidade mórbida dos turistas, que as vai mantendo de pé. A capela de ossos de Évora é o monumento mais visitado de Évora, apenas a par, talvez, do Templo de Diana, de que não há, obviamente, registo das visitas.
Legendas:   Fig. 1 – Entrada na Capela de Ossos da Igreja de S. Francisco, Évora
                    Fig. 2 – Capela de Ossos da Igreja de S. Francisco, Évora
                    Fig. 3 – Capela de Ossos de Campo Maior
                    Fig. 4 – Capela de Ossos da Igreja do Carmo, Faro
                    Fig. 5 – Capela de Ossos de Alcantarilha, Silves









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