AS CAPELAS DE OSSOS EM PORTUGAL
Carlos Rodarte Veloso
Publicado na Correio Transmontano, 5 de Fevereiro de 2017
Pode
não parecer muito convencional instituir
em obra de arte as “capelas de ossos”, espaços sacros revestidos com ossos
humanos, as caveiras militarmente enfileiradas, alternando em arranjos rítmicos
de tíbias, úmeros, fémures, de lado ou de topo, em filas ou em colunas, submergindo o incauto observador num vórtice
de horror.
Não será argumento aceitável o terem sido utilizados
elementos naturais — os ossos humanos — na sua construção. Uma coisa é a
disposição natural de elementos naturais — como o serão as rochas que
constituem a célebre “Cabeça da Velha”, na Serra da Estrela — e outra, muito
diferente, a disposição artificial dos mesmos elementos naturais formando um
dólmen, por exemplo: aí existem “modificações intencionais que o espírito
humano imprime em objectos da natureza”, como refere Raymond Bayer… e é isso
exactamente que se passa em todos os monumentos cujo material de base são os
últimos dos despojos humanos, os ossos. Dos mais simples carneiros
— os ossários medievais — às capelas
de ossos propriamente ditas,
todo o cenário assim organizado tem um propósito implícito: a contemplação
dos ossos , símbolo da transitoriedade das coisas terrenas, convite à oração
pelas Almas do Purgatório e à
reflexão sobre a hora mortis .
Falei em cenário e essa referência remete-nos
para o universo das atitudes humanas perante a morte e das mentalidades que as
geraram: o teatro, o espectáculo, prenúncio do Barroco bem
presente no riso sinistro da caveira da vanitas romana, ou dos túmulos de diferentes épocas,
na dança
macabra medieval, ou nos
repugnantes jacentes dos séculos XIV e XV, representando, em todo o seu horror,
a decomposição do cadáver, símbolo acabado da impureza que a morte traz…
Falei em oração pelas Almas do Purgatório e logo me ocorre toda a problemática da introdução do Purgatório no imaginário
cristão, depois de séculos marcados a fogo pelo dualismo Paraíso-Inferno, tema
caro a grandes nomes da actual historiografia, como Jacques Le Goff, e cuja
importância foi tão expressivamente vincada por Chaunu. Logo me ocorre ainda a
espontaneidade e o vigor do culto popular das Alminhas e de todas as Confrarias que lhes prestaram
culto no nosso País, e de que todas as capelas de ossos parece terem sido sede.
É num contexto pré-barroco que são construídas as
primeiras capelas de ossos em Portugal, havendo também pelo menos um exemplo
espanhol, a capela de ossos de Wamba, próximo de Valladolid, pelo menos duas em
Itália e outras em diversos países da Europa Central.
Quanto
ao levantamento destas capelas em Portugal, parecem bastante promissores os
resultados obtidos. De momento, podemos referir, globalmente, as seguintes
capelas portuguesas: a de Santa Cruz de Coimbra, quinhentista, e as de Elvas e do Porto, todas desaparecidas,
a de S. Francisco de Évora, a mais célebre, as de Campo Maior, Monforte, Lagos,
Alcantarilha (Silves), Pechão (Olhão) e as duas de Faro. Onze ao todo, apenas
duas delas situadas a norte do Tejo. As ainda existentes podem agrupar-se,
tipologicamente, em duas grandes regiões: a do Alentejo e a do Algarve. As
primeiras são menos elaboradas do ponto de vista decorativo, mais “pesadas” —
leia-se barrocas — devido a um
verdadeiro “horror ao vazio”, contando com o exemplo mais espectacular, o de
Évora. As capelas algarvias apostam numa maior delicadeza decorativa, buscando
reduzir as ossadas a ornatos mais ou menos “inocentes” — leia-se, “disfarçados”
—, o que as identifica, formal e cronologicamente, com o rococó.
O caso da capela de Coimbra, pretensamente
constituída pelos ossos dos cristãos tombados no campo da mítica batalha de
Ourique, é extremamente interessante, não só por a sua antiguidade situar a
respectiva construção entre 1533 e 1541, mas pela ligação perfeitamente
evidente que é estabelecida, desde o primeiro momento, entre a dita capela e um
autêntico culto da figura de D. Afonso Henriques levada a cabo pelos frades
Crúzios e que tudo tentaram junto de D. João III, e deste junto da Santa Sé,
para se obter a canonização do nosso primeiro rei…
Como se
vê, não são poucas as reflexões suscitadas por estas pobres construções, ainda
pouco conhecidas — a capela de ossos da Igreja de S. Sebastião de Lagos é até
desconhecida de muitos dos seus vizinhos mais próximos! — e menos estudadas
ainda. Desprezadas pelos poderes
públicos, é o culto popular das Almas do Purgatório, associado a uma certa
curiosidade mórbida dos turistas, que as vai mantendo de pé. A capela de ossos
de Évora é o monumento mais visitado de Évora, apenas a par, talvez, do Templo
de Diana, de que não há, obviamente, registo das visitas.
Legendas: Fig. 1 – Entrada na Capela de Ossos da Igreja
de S. Francisco, Évora
Fig. 2 – Capela
de Ossos da Igreja de S. Francisco, Évora
Fig. 3 –
Capela de Ossos de Campo Maior
Fig. 4 –
Capela de Ossos da Igreja do Carmo, Faro
Fig. 5 –
Capela de Ossos de Alcantarilha, Silves
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