IDENTIDADE NACIONAL E GLOBALIZAÇÃO
Carlos
Rodarte Veloso
Publicado n’”O Templário” de 2-2-2017
Vivemos
um tempo em que muito do que antes parecia certo e imutável se tornou instável
e discutível e entram nesse rol de incertezas coisas consideradas tão
solidamente implantadas como as noções de Soberania e Independência Nacionais. E
não é um acaso falar destas realidades num momento em que uma muito inculta
“cultura de massas” ou “cultura Coca-Cola”, se pretende substituir às diferenças que distinguem uma
comunidade de outra comunidade. A normalização que o triunfo desse conceito
constitui, não representa — ao contrário do que o senso comum parece sugerir —
uma vitória da Democracia como ela é entendida em termos sociais e políticos
mas, pelo contrário, o fim de um mundo diversificado e colorido em que,
pensava-se há poucos anos, todas as culturas começavam, finalmente, a caminhar
para um convívio igualitário, pacífico e despreconceituoso… para um Futuro!
Em
contra-corrente, os actuais movimentos políticos xenófobos e
ultra-nacionalistas, de que Donald Trump, Putin e Marine Le Pen são claros
epítomes, hipervalorizam essas diferenças, mas de um ponto de vista
completamente contrário a esse convívio, encerrando o Futuro numa redoma
forrada de muros e arame farpado, de hostilidade e de agressividade, mostrando
um horizonte recheado de perigos e guerras intermináveis.
Por
isso mesmo e cada vez mais, o último reduto da Identidade Nacional, aquilo que
nos diferencia dos Outros e nos identifica como Portugueses, mas sem diabolizar
o Outro, sem nos valorizar à custa da diminuição do Diferente, encontra-se na
riqueza de um património cultural muito
nosso, que aprendeu a conviver com outras culturas, muitas vezes não
pacificamente, é certo, mas de uma forma geralmente inclusiva, muito ao
contrário do que que se passou com outras hegemonias ocidentais. Cabe-nos,
pois, defender esse legado imemorial, aperfeiçoá-lo, dá-lo a conhecer aos
vindouros e utilizá-lo como a bandeira da nossa identidade e, assim, da nossa Cultura.
Nada
do que é humano é alheio à Cultura.
Portanto, a própria atitude anti-cultural que muitos tomam, por pensar que a
cultura não lhes serve para nada, é também — por muito que lhes pese… — uma
atitude cultural, já que corresponde a uma ideologia utilitarista, oportunista,
se o preferirem…
Essas
pessoas não compreendem que a própria ideia de Progresso, de um certo progresso que decerto aprovam, quanto mais
não seja porque as suas realizações materiais lhes são úteis, é um dado cultural da maior importância e que pode ser
encarado tanto de uma forma puramente material, como espiritual. Geralmente
preferem-lhe a Tradição, esquecendo
que essa mesma tradição é um pau de dois bicos, que tanto convoca os valores
mais elevados da Humanidade, como os mais baixos, vindos de tempos obscuros e irracionais,
de “Idades das Trevas, como têm sido classificados.
A
ideia de património cultural está, portanto, intimamente associada à ideia de herança cultural ou seja, o elo de
união entre as gerações, mesmo separadas por séculos ou milénios. Isto quer
dizer que o povo português tem mantido, através dos tempos, certas
características próprias, exteriorizadas através de atitudes, símbolos e formas
de expressão — a língua é uma delas,
e a mais importante — que permitem identificá-lo entre muitos outros, apesar
das naturais semelhanças entre todos os povos.
A
proximidade desse passado, tão presente ainda nas águas do rio, sempre em
movimento mas sempre renovadas, por vezes movendo ainda os seus moinhos ou
inundando as margens, nos altos perfis de montanhas, sentinelas de agora e de
sempre, nas infindas planuras, mudas testemunhas de secas e batalhas,
procissões e incêndios, no campanário da matriz, retinindo ao longe, como no
ano da Peste, no anúncio das bodas do Príncipe ou no último auto-de-fé, traz-nos
os ecos dessa vida passada que plantou raízes na nossa memória colectiva.
Neste
sítio, mais coisa menos coisa, naufragou um navio que vinha das Índias,
carregado de ouro e de escravos. O ouro foi procurado e em parte recuperado, os
escravos sobreviventes, escravos continuaram, mas a população ajudou os
tripulantes salvos das águas, com eles partilhou as suas humildes casas, a cama
e a comida. Ganância, opressão e humanidade, as faces díspares da humanidade,
num só momento… A história local é o instantâneo vívido, o corte no devir, o
momento e o sítio exactos. Depois, o local regressa à obscuridade, até que
outro naufrágio, uma pesca milagrosa, um maremoto, o relança no mundo. Mas é
também o longo e obscuro percurso de uma comunidade presa na máquina implacável
da “grande história”, tornando-a, contudo, credível, humana…
É o
somatório das histórias locais que perfaz o todo em que nos inserimos, a nossa
razão de existir como ser colectivo. Estou a falar de uma história feita de estórias,
estou a falar de gente. Gente
individual e gente colectiva, interagindo no seu meio, mas projectando-se
também num exterior que poderia não passar do horizonte mais próximo… ou
atingir os confins do mundo, atingir as estrelas! Em vez da apagada e vil
tristeza que induz ao egoísmo, à desumanidade.
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