MANUSCRITO, UMA PÁGINA AUTOBIOGRÁFICA
1º ANDAMENTO
Tomar, 26 de Agosto de 2009
Pego hoje neste caderno, que me foi oferecido há já 2 ou 3 anos, para dar uso a um modo de escrita de que quase me esquecera: o manuscrito.
O computador quase me tirou o uso da caneta e a verdade é que gosto de digitar tudo o que escrevo, apesar do muito que logo lanço no misterioso abismo electrónico do “lixo” a cada correcção, a cada frase que me soa mal.
Mas a correcção só actua sobre a última versão: todas as outras se perderam para sempre na voragem dos pixéis ou seja lá do que for. De facto é muito mais “limpo”, mas perde-se o direito de regressar – e melhorá-la – à última, à penúltima, à antepenúltima tentativa, essa talvez a ideal...
Hoje apeteceu-me saborear essa possibilidade que tão bem conheci nos tempos a.C. (antes do Computador), o saboroso, húmido deslizar do aparo no papel, liso como uma pista de gelo.
É bom redescobrir coisas antigas, conservadas apenas na memória que se vai dissolvendo no correr dos dias. E pegar na caneta, pesada como já não me lembrava, e apurar a velha linha sinuosa, agora um pouco trôpega.
As centenas de assinaturas e rubricas que tenho sido obrigado a traçar, mecanicamente mas nunca iguais e cada vez mais ilegíveis, não são já escrita: são uma impressão menos perfeita que a digital, essa sim, sempre igual, exactamente igual, mas tão pouco criativa como esta.
Sobre este caderno também alguma coisa deve ser dita: é encadernado com a impressão em relevo de escritos de Shakespeare. Homenagem ao Poeta, Dramaturgo, Actor? Ou a simples presunção de ascender a esse clube restrito de que ele foi um dos maiores?
O que já escrevi – e até foi publicado – é demasiado pobre e, se a inspiração tem sido pouca, a transpiração foi ainda menor. Faço votos para modificar isso.
Vou continuar com o computador, porque me agrada e porque só assim consigo ler facilmente o que escrevi. Penso que agarrei esse defeito da pseudo-vocação para médico que noutra era da minha vida pensei possuir, a caligrafia quase ilegível que, diz-se, é apanágio de todo o verdadeiro diplomado em ciências médicas.
Mas outra vocação se escondia por debaixo da declarada oficialmente: a de um fanático amante da História, tomara que um Historiador, um Investigador, um Arqueólogo. Essa tendência mantinha-se à superfície, mesmo durante as compridas aulas no Teatro Anatómico, nos laboratórios de Química e de Física, nas salas de Biologia, Histologia e Fisiologia. Estava lá, mas não a via, porque era então considerada uma profissão predominantemente feminina. Mas boa parte dos livros de Medicina que comprei de moto próprio durante o curso eram de História da Medicina – decerto um alibi... – além dos de História pura e dura, aqueles que já então enchiam a minha estante.
A assunção da minha verdadeira vocação ocorreu durante o afastamento da Universidade devido à minha incorporação compulsiva no Exército, em parte devida à minha outra paixão, a Política, que me ensinou a teoria e a prática da intervenção cívica, em desafio constante à ordem instituída, a do Estado Novo. E a “tropa” foi a minha nova Universidade, o período mais aliciante da minha vida em que assisti ao espectáculo da História em Acção tornando-me eu próprio seu agente durante o 25 de Abril e nos tempos subsequentes, a ruptura entre o Velho e o Novo.
Disse então adeus à Medicina e matriculei-me em História. E se os quatro anos de Medicina se saldaram num irrisório resultado académico, a mudança de rumo proporcionou-me as maiores alegrias e realização académica e profissional.
Voltando à escrita, o meu feitio impaciente não me permite apurar a minha verdadeira caligrafia que, sei-o bem, é até elegante e harmoniosa quando cuidadosamente cultivada. Como se lavrasse um campo, ora rasgando, ora afagando com o aparo-arado o ondular dos torrões macios ao longo de infinitas linha paralelas.
Mas chega de exercício inútil, autojustificação de umas quantas linhas desajeitadas. A última vez que me dei a este exercício foi em Fevereiro de 2007, internado no Hospital de Torres Novas, combalido ainda do enfarto que me abriu pela primeira vez os olhos para a finitude de tudo o que vive.
Sobrevivo desde então, como desde que nasci, mas esse exercício de escrita manuscrita foi o mais intenso que já vivi. Não vou agora reler esse texto tão sentido que partilhei apenas com a meu núcleo familiar – mulher e filhos – como não vou agora reler tanta coisa que tenho em lenta – lentíssima – maturação, especialmente as minhas pequenas memórias a que pensei chamar “Crónicas do Tempo da Peúga”, frase saborosa que aprendi com um filho e que ele aprendeu de um colega.
Penso que têm mais valor do que tudo o mais que escrevi: isto porque escrevi nessas crónicas – ainda bem longe de terminarem – sobre o assunto em que sou o principal especialista: eu próprio!
2º ANDAMENTO
Tomar, 14 de Agosto de 2017
Releio agora o texto escrito há 8 anos e uns dias e a verdade é que ele se mantém razoavelmente actualizado . As coisas terão melhorado um pouco no capítulo da escrita. Sinto-a mais livre e escorreita. A aposentação proporciona-me mais horas livres para escrever, seja na imprensa local e regional, seja no meu blogue ou, ainda, na minha página do facebook.
Embora os número de páginas destas colaborações não parem de aumentar, não posso considerar-me totalmente feliz com os resultados, por muito simpáticas que sejam as reacções de quase todos os que me lêem. Talvez sejam as reacções de ódio e de agressividade que mais me motivam, pelo sentimento que interiorizo de ter atingido em cheio o alvo pretendido.
Quanto à saúde, posso dizer que estes 8 anos foram francamente desastrosos, mas venho falar de escrita e não de doença. No entanto a sensação de imprevisibilidade que me acompanha desde 2007 ensinou-me a relativizar as coisas e talvez deva a essa circunstância uma maior maturidade na expressão, a par de um maior sentido autocrítico.
Quanto à escrita manuscrita ela proporciona-me bastante prazer mas continua a não passar de um mero exercício sensorial . O novo hábito proporcionado pela uso dessa extensão do cérebro que o computador representa, cria maior habituação do que os antidepressivos ou outras drogas psicotrópicas da moda.
Mas vou preserverando, tal como faço esporadicamente com o desenho, uma velha prática que vem praticamente da infância, uma outra forma de expressão em que me tinha apurado razoavelmente.
Poderei dizer que procuro evitar a todo o custo o vazio a que esta nova vida de lazer poderia dar lugar. Talvez assim seja, já que regressarei brevemente ao Ensino, embora a um Ensino destinado a diferente público e com diferente exigência em termos de conteúdo, mas igualmente exigente pedagogicamente.
E às viagens, a minha verdadeira paixão, mesmo que mais limitadas pelo orçamento e pelos problemas de saúde. A descoberta do mundo, mesmo de um mundo cada vez menos apetecível face às expectativas criadas nos longínquos anos de esperança do final do século XX. Mas é o mundo que temos e por que vale a pela lutar.
São esses os motivos de optimismo pessoal que cultivo num momento em que as ameaças mundiais e nacionais são muito maiores do que as esperanças. De caneta ou de teclado em riste, como sempre!
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