Em 26 de Fevereiro de 1988 publiquei, no jornal Cidade de Tomar, um artigo que então me pareceu muito pertinente, intitulado “A Utilidade da História”. Essa pertinência devia-se a sintomas, já então muito evidentes, da decadência do interesse pelo pensamento humanístico e da invasão triunfante do espírito tecnocrático, inimigo feroz de tudo quanto não tenha uma utilidade evidente expressa em números. As Humanidades pareciam um dos alvos a abater para esses seres especiais que apenas aceitam uma Cultura convertível em cifrões e em sinais de poder.
Quase trinta anos depois, as coisas não se modificaram para melhor. Para o Poder, para as instituições, para os media, tudo se reduz a números, a estatísticas... Mas o mal não é só português: está em toda a parte neste abençoado mundo que globalizou a miséria, como já tinha globalizado a violência. É que a pretensa falta de prestígio das Humanidades e das Ciências Humanas não permite aos Senhores do Mundo arrepiar caminho face aos indicadores de alarme que elas lhes poderiam proporcionar. Da Sociologia à Demografia, da Antropologia à Geografia Humana, da Psicologia à História, os seus especialistas, se fossem ouvidos, poderiam inflectir as tendências suicidárias que dominam os governos, em todos os continentes.
Um parêntesis: Apenas a Economia, de entre as diversas Ciências Sociais, mantém ainda o favor de tais senhores. Por enquanto, pois hoje está muito prejudicada, na sua infalibilidade, pela crise geral do sistema que os "papas" de economia liberal recomendaram durante décadas. Não esqueçamos, no entanto, que há tantas "Economias" quantos os sistemas económicos existentes, cada uma correspondendo a diferentes teorias e, portanto, prescrevendo soluções diferentes. Como há também diferentes interpretações na Psicologia, na Antropologia, na História... muitas vezes usadas como armas políticas.
A arma que a História consagrou como antídoto contra a estupidez que conduz à autodestruição da Humanidade, foi o convívio pacífico e enriquecedor de todas as Ciências, Exactas e Humanas. Era esse o ideal do Renascimento que, se não correspondeu a uma época de paz, foi a incubação de um sonho que conduziria a mais Justiça e a mais Saber, depois de nova travessia dos infernos das várias inquisições e tiranias que marcaram os séculos XVI a XVIII... para ressurgirem, triunfantes, nos civilizadíssimos séculos XX e XXI...
Desse convívio nasceram novas ciências, como a Ecologia, a ciência maldita para os tecnocratas, pois lhes limita os rasgos economicistas, lhes trava a iniciativa e tem uma desagradável tendência para alertar o mundo para os perigos da sua perniciosa actividade e para o choque fatal entre lucro descontrolado e qualidade de vida... E também nasceu a Economia, aos altos e baixos entre o Liberalismo ― palavra perigosa porque muda de sentido na travessia do Atlântico ―, e o Marxismo, palavra ainda mais perigosa, porque inventou o Socialismo, outro espécime ameaçado neste bendito mundo...
Vinha falar de História e ainda mal a mencionei, mas não falei de outra coisa o tempo todo! Por isso, para mim, perguntar para que serve a História é uma frontal provocação. Houvesse um melhor conhecimento desta ciência, hoje tão desprezada pela classe do Poder, e teríamos governantes que arrepiariam caminho antes de caírem pela enésima vez nas armadilhas que a Memória poderia denunciar. Porque de Memória estamos a falar.
O historiador é o mais disponível, e também o mais aberto dos investigadores. O mais disponível, porque nada do que é humano lhe é estranho, um pouco “como o monstro da lenda”, no dizer de Marc Bloch, que “onde fareja carne humana, encontra a sua caça”... O mais aberto, porque o mais universalista, o mais permeável à permuta de ideias com os especialistas de outras áreas e o mais despido de preconceitos porque, se não o for, será talvez um cronista ou um ideólogo, mas historiador é que não!
Das Ciências Humanas, é a História a que mais directamente se identifica com a ideia de Cultura, seja ela local, nacional ou universal. É a História que estuda a Cultura no tempo, a sociedade no tempo, a Arte no tempo, a Ciência no tempo, a Técnica no tempo...
Mas afinal sempre faço a pergunta: para que serve a História? Todos quantos enfrentámos ou enfrentamos os rostos perplexos, suspeitosos até, dos jovens em primeiro contacto com as “brumas da memória”, aprendemos o quão difícil é transmitir, explicar a utilidade desse saber tão problemático... Não se teoriza sobre o que se ama e não poucos de entre nós titubearam, hesitaram sobre a “utilidade” daquilo de que nunca procurámos a utilidade. Também não se procura a utilidade do amor, da beleza, do prazer, mas quase todos os procuram...
Como reconhece Joseph Hours, “o conhecimento do passado não pode ser utilizado numa acção profissional, da mesma forma que numa noção de física ou de matemática é utilizada por esta ou por aquela técnica”. Nunca nos perguntamos para que serve conhecermos os nomes dos pais, dos avós, ou a sua origem, sobre a utilidade de conhecer as cores e nomeá-las, contar os objectos e conhecer-lhes as formas, procurar a beleza...
O conhecimento histórico não é tão imediato, mas é fundamental até nas sociedades ditas "primitivas", em que os limites do mundo se encontram nos cumes dos montes mais próximos, na orla ondulante da floresta de carvalhos, na linha dos choupos ribeirinhos, nas margens do grande Mar Oceano... Para esses povos não há história, porque não existe um tempo profano: é o ciclo sagrado do eterno retorno, da “repetição até ao infinito dos gestos exemplares” de heróis e deuses, diz Mircea Eliade, que apenas assinala a sucessão dos dias. “Dos trabalhos e dos dias”, diria Hesíodo. Povos para quem é estranha a ideia de evolução, e os próprios conhecimentos técnicos provêm do “princípio dos tempos”, dádivas eles próprios de gestos criadores de deuses ou de heróis míticos. Mas mesmo essa narrativa a-histórica é, ainda, história!
Se isso é assim para as sociedades “sem História”, como não será para o mundo globalizado em que hoje vivemos, em que a normalização se impõe como um colete-de-forças que transforma a multidão dos povos em rebanho. Em que vivemos uma história linear, sempre a caminho dum futuro radioso, de vitória em vitória até à destruição final?
Para a humanidade dos nossos dias já não existem conhecimentos “puros” provenientes de uma só cultura, de um só povo ou de uma só etnia: cada nova atitude, cada nova descoberta, assentam numa atitude ou numa descoberta já passadas, num erro ou numa sucessão de erros... Quantas casas de adobe e de tijolo, de pedra solta e de alvenaria foi preciso erguer, e quantas ruíram, antes que fosse colocada a última pedra da abóbada capitular do Mosteiro da Batalha ou o último lanço da Ponte Vasco da Gama? E as embarcações, de todos os tempos e nações, que sulcaram os mares e neles se perderam, antes que Bartolomeu Dias, há mais de quinhentos anos, franqueasse as portas do Índico! Todas as inovações, por muito de novo que tragam, assentam os seus alicerces no velho, trazem em si raízes do passado, mas também já, as sementes do futuro: degrau a degrau buscam uma nova fronteira, o intangível...
O conhecimento da História, mais do que qualquer outro, é indispensável à identificação cultural de um povo, de uma nação. Na verdade, a História é a Ciência Humana por excelência, a referência insubstituível, a memória da espécie, a compreensão do mundo que foi, é e será.
Entrados num novo século, nem por isso especialmente “novo”, continuamos a fazer o balanço dos últimos cem anos, dominados pela guerra e pela ideologia. Os acontecimentos da década de 80 nos países do leste europeu, ao mesmo tempo que contribuíam poderosamente para uma nova ordem mundial, pareciam ― pareciam! ― prenunciar o estabelecimento de uma paz duradoura, mesmo nos pontos nevrálgicos do globo. Foi então anunciada, pelos analistas, a morte pura e simples da ideologia…
O tempo foi passando, e os factos desmentiram todas as expectativas. A nova ordem mundial continua crivada de contradições geradoras de conflitos, adiadas apenas até à derrocada do Bloco de Leste pela estratégia internacional das grandes potências. Assim se explica o ressurgir das nacionalidades sufocadas pelos velhos tratados que, desde o início da Idade Moderna puseram fim às sucessivas guerras europeias: tratados de grandes potências, feitos a régua e esquadro nas mesas de negociações; fronteiras artificiais, divagando ao sabor dos avanços e recuos dos exércitos, ou dos imprevisíveis humores deste ou daquele príncipe… Opõem-se, assim, os países nascidos das novas partilhas da Europa e as velhas nacionalidades medievais. O mesmo aconteceu em boa parte da África e no Médio Oriente, antes dominados pela colonização europeia: a sua partilha pelas diversas potências conduziu, após a onda de independências, a conflitos regionais intermináveis e passíveis de alastrar a áreas cada vez maiores. E o aparecimento do terrorismo como um facto incontornável e incontrolável, tornou-se a ameaça e o álibi para todos os atropelos à própria Democracia. A intervenção das grandes potências e os novos tratados de partilha, criaram um círculo infernal, em que cada guerra dá origem a novas guerras… Até a nossa Europa, ainda a ajustar contas com o seu passado desvairado, revela as fragilidades do entendimento internacional e a cada passo em frente correspondem sempre vários passos atrás.
Por isso parece perfeitamente prematuro o dobre de finados pela Ideologia, exactamente o oposto da Ciência ― embora dela se sirva descaradamente! ― , tentativa de resposta às nossas angústias, aos males que afligem a humanidade… E é bem vasto o domínio da ideologia: da religião às várias atitudes perante a nação, o estado, a sociedade, o indivíduo, a arte, a natureza… Este início de século, mais fértil em expectativas por ser também o início de um novo milénio, ampliava a esperança na resolução dos problemas humanos. Contudo, a paz, a justiça social, o bem-estar humano e o equilíbrio ecológico parecem cada vez mais distantes, enquanto ressurgem ou sobrevivem teimosamente os fantasmas dum passado ainda recente, que pensávamos morto e enterrado: o racismo e a xenofobia, o nacionalismo, o machismo, as formas de exploração mais descarada, o fanatismo religioso, a pena de morte…
A defesa de cada um e de todos depende da aplicação de sistemas de pensamento, que se opõem a outros sistemas de pensamento… De ideologias que se opõem a outras ideologias! Elas existem e precisamos desesperadamente delas, ao menos como factor de esperança. O seu desaparecimento depende, “apenas”, da resolução das preocupações que lhes deram origem… Como poderá afirmar-se, então que “a ideologia morreu”?!
Diferente será, no entanto, o seu peso das Ciências. Já vai longe o tempo em que a Igreja Católica, através do seu braço armado, a Inquisição, podia impor o silêncio a um Galileu Galilei, para que os seus estudos astronómicos não pusessem em causa as “verdades eternas” das Sagradas Escrituras e do senso comum… Ou em que era ridicularizado um Darwin, porque as suas descobertas desmentiam o mais velho quadro da Bíblia, a Criação de Adão e Eva! E, no entanto, aí vemos, de novo triunfante no país do progresso e do racionalismo, uma versão moderna do Fixismo: o Criacionismo norte-americano e a ideia espantosa do Desenho Inteligente, a intromissão descarada da Ideologia num conhecimento universalmente reconhecido pela Paleontologia, pela Arqueologia e pela própria Biologia!
Foi a História, decerto, a mais atingida por esta contaminação, porque beneficiária dos discutíveis favores da ideologia… Poucos historiadores escaparam à sua influência, desde Hérodoto, “o pai da História”, aos cronistas medievais e modernos ― sem excepção sequer do nosso tão isento Fernão Lopes ― e a muitos dos contemporâneos, enredados na teia dos interesses da sociedade a que pertencem. Opções políticas, económicas, religiosas, morais, filosóficas e nacionais sobrepõem-se frequentemente à verdade histórica.
Complexos ideológicos como a pretensa superioridade do homem branco ― ou do ariano… ― a infalibilidade do Papa, a legitimidade da Monarquia Absoluta, a justificação da Guerra ou da Conquista, a necessidade do “espaço vital”, a “missão histórica”, as “fronteiras naturais”, a própria Democracia, a Revolução, tiveram também historiadores entre os seus apóstolos. A sua verdade terminava sempre onde começava a dos seus adversários… Em nome de um patriotismo mal entendido, ou de um pragmatismo que remetia a História para a esfera da Moral e, até, da Epopeia, pretendia-se educar os jovens nos altos exemplos dos seus antepassados, omitindo quaisquer factos menos edificantes… Assim agia Tito Lívio, historiador romano, tentando restaurar entre os seus patrícios os “antigos costumes” ― mos maiorum ―, e assim fez o nosso João de Barros, ao “justificar” os direitos invocados pela coroa portuguesa para o domínio do comércio, das rotas e das terras do Oriente…
Em todos os países e sob os regimes políticos e sociais mais diversos, assim justificou a História a sua “utilidade”. Mas no século passado era já reconhecido o seu carácter científico, garantido por grandes nomes da investigação histórica. Isso não impediu o seu aproveitamento político por regimes autoritários ou intolerantes, que assim encontraram “argumentos” suplementares para a sua estratégia de poder.
Assim aconteceu na Alemanha de Hitler, na União Soviética de Estaline, na maioria dos países islâmicos e, com algumas variante, em países “democráticos” como os Estados Unidos de McCarthy e, também, nos de Bush ou, pensando no futuro, de Trump... É que cada um destes exemplos frutificou junto de amigos e aliados. As causas eram diferentes, as formas de repressão variadas, mas igual o prejuízo para a Ciência Histórica, como já o tinha sido para as liberdades individuais e colectivas!
Assim aconteceu com o “Estado Novo” de Salazar, cujos historiadores se apressaram a enfatizar todos os aspectos da nossa História que convergissem com a política oficial. Das “comemorações” aos programas escolares constantes dos “livros únicos”, aos discursos políticos, a palavra de ordem era realçar o papel civilizacional dos portugueses, a alta missão histórica que lhes era confiada por Deus, as glórias militares e religiosas e a clarividência dos Governos da Nação ― excluindo, “evidentemente”, os da 1ª República Democrática! … ― enquanto a Censura se encarregava de silenciar todas as opiniões discordantes…
Essa concepção distorcida da verdade histórica, não era novidade. O exacerbado nacionalismo oitocentista tinha também dado origem a uma mitificação poética do passado que fez escola até aos nossos dias, depois de ter alimentado fartamente o “stock” ideológico do salazarismo.
Um desses mitos era o da “Escola de Sagres”, pretenso círculo de sábios em astronomia e ciências náuticas, sedeado em Sagres, em torno do Infante D. Henrique e seus cavaleiros… Curiosamente, a ideia da invenção deste autêntico Quartel-General das Descobertas é de um inglês, Henry Major, que o descrevia, em 1868, na biografia romântica do Infante The life of Prince Henry of Portugal. Documento algum a menciona, mas esse “pormenor” não impediu que Oliveira Martins o aproveitasse… Nas páginas idealizadas da sua História de Portugal, mais literárias que históricas, podemos imaginar o Infante a ler atentamente livros científicos… que só viriam a ser escritos após a sua morte! … Seja como for, a autoridade dos "historiadores" oficiais do regime impôs-se, e a “Escola de Sagres” e os seus “Sábios” ganharam o estatuto de facto histórico indiscutível! Ainda hoje e apesar do categórico desmentido de tantos investigadores, de Luciano Pereira da Silva e Duarte Leite a Luís de Albuquerque, livros de divulgação e até manuais de História para o Ensino Básico e Secundário, mencionam a mítica “Escola”, fruto de um delírio romântico, sem dúvida contagioso…
Também a arte nacional foi afectada pelo domínio da ideologia, quando se pensava que o Manuelino era a expressão acabada das Descobertas, sendo toda a sua decoração constituída, exclusivamente, por motivos marítimos. Esta tese, que vinha de trás, encontrou na historiografia oficial do “Estado Novo” o terreno fértil de que carecia, como resposta à sua crescente contestação por diversos investigadores. Nasciam novas interpretações do nosso “estilo nacional”, que convergiam em alguns pontos definidos: a decoração manuelina seria caracterizada por motivos vegetalistas, nomeadamente o “tronco podado” da decoração tardo-gótica alemã e outros, comuns ao Hispano-Flamengo espanhol, estilo contemporâneo dos Reis Católicos; estes motivos só muito raramente estariam associados a elementos marítimos, mas com provável significado religioso. E no entanto, nada disto impede que a maioria dos manuais escolares, bem como os livros de carácter turístico para a promoção de Portugal entre os estrangeiros, continuem a afirmar a decoração manuelina é constituída por elementos marítimos, fazendo tábua rasa de toda a investigação mais recente… Tal é o peso da ideologia! …
Não se pense, no entanto, que apenas os portugueses tenham mitificado a sua História, por motivos políticos ou outros… Também os estrangeiros procuraram, em todas as épocas, dar de si próprios uma imagem favorável, de acordo com as suas próprias aspirações de domínio ou de simples ascendente sobre outros países ou as suas possessões… E, nesse ponto, é a nossa verdadeira História a principal vítima!
Os nossos mitos e os mitos dos outros… No fundo, não servirão uns para justificar os outros? …