sábado, 31 de dezembro de 2016


OPINIÃO// Carlos Rodarte Veloso
Santa Maria de Cárquere e Afonso Henriques menino
No concelho de Resende, cerca de seis quilómetros a sul da vila e do rio Douro, desenrola-se uma paisagem deslumbrante de montes e verde nos contrafortes da serra de Montemuro, parte do antigo domínio do aio de D. Afonso Henriques, Egas Moniz, aquele que levou a família ao rei de Castela, com a corda ao pescoço, para expiar a quebra de juramento do seu rei.
Menos conhecida é a lenda que o liga directamente a estas terras e à construção do mosteiro de Santa Maria de Cárquere. Com algumas variantes, é contada mais ou menos assim: Afonso Henriques nasceu com as pernas de tal modo tolhidas, que não havia qualquer esperança de algum dia poder andar. Egas Moniz, companheiro de armas de seu pai, o conde D. Henrique, educou-o e cuidou dele, como se de um filho se tratasse. Tinha ele cinco anos, foi Egas Moniz surpreendido por uma visão da Virgem que o aconselhava a procurar uma imagem sua no local de Cárquere. A imagem foi encontrada numa cripta, sobre a qual existia um altar. De imediato e de acordo com as instruções divinas, nele depositou o corpo enfermo do futuro rei. A cura foi total e imediata, e motivou o voto da construção, nesse local, de mosteiro consagrado à Virgem. A tradição local perpetua esse milagre com versos e orações, e aponta uma minúscula imagem em marfim guardada na igreja, pretensamente visigótica, como a original da lenda. É claro que pelo seu tamanho e valor está bem guardada num cofre e apenas pode ser vista em fotografia. Se é visigótica ou românica, não há modo de ter a certeza, mas como há a possibilidade de ter aqui existido templo ou ermida pré-românica, essa hipótese é minimamente credível.
Não menos venerada é a imagem da Senhora-a-Branca, escultura gótica em pedra de Ançã, característica das oficinas de Coimbra. Esta escultura está muito deteriorada pois a sua base é raspada pelas mães da região, que acreditam que ao beber com água o pó assim obtido, garantirão um bom aleitamento… Esta crença, cuja idade se desconhece — anos? séculos? — e continua nos nossos dias, obrigou a preencher com gesso as falhas na superfície da imagem.
Do primitivo mosteiro nada resta, além de algumas construções a que chamam “o conventinho” e da capela funerária contendo quatro grandes túmulos dos condes de Resende, descendentes de Egas Moniz, cuja tosca janela românica atesta a antiguidade. Os edifícios sobreviventes, mesmo alterados por construções posteriores, são belos e integram-se harmoniosamente na paisagem envolvente. Um grande arco, uma sólida torre ameada, o conventinho e a igreja, belíssima na sua simplicidade mas de pórtico já manuelino e ornada no interior com bons altares barrocos em talha, constituem monumento digno dos pergaminhos históricos e lendários que ostenta.
Eça de Queiroz conheceu-o decerto, pois sua mulher, D. Emília de Castro Pamplona, era descendente dos condes de Resende e a casa onde viveram, em Santa Cruz do Douro, a Tormes de A Cidade e as Serras, situa-se a poucos quilómetros, na outra margem do Douro. O próprio Eça presta directa homenagem ao velho mosteiro que, em A Ilustre Casa de Ramires , transfigura para Santa Maria de Craquede. Neste romance, no final do capítulo VII, descreve a capela, mas convertendo-a em imponente construção e multiplicando o número de túmulos, cujas características altera também: “E contra o muro, onde rijas nervuras desenham outros arcos, avultam os sete imensos túmulos dos antiquíssimos Ramires, denegridos, lisos, sem um lavor, como toscas arcas de granito, alguns pesadamente encravados no lajedo, outros pousando sobre bolas que os séculos lascaram”.
Junto ao mosteiro, no morro das procissões, onde existiu um castro romanizado, pastam rebanhos de ovelhas e cabras. Contudo, em Maio, velhíssimas cerimónias juntam aqui o povo dos lugares vizinhos para implorar protecção contra as trovoadas. Tudo em redor contribui para fazer sentir ao visitante o peso de séculos e a continuidade no presente de práticas obscuras de que já não há memória. Terras onde o maravilhoso e o real se dissolvem nas brumas da imaginação…

Foto:Igreja Matriz de Cárquere,Resende/Viseu//Créditos de Acscosta, com a devida vénia //Wikipédia

ARTE E CULTURA GERAL
Carlos Rodarte Veloso
(Publicado na Correio Transmontano em 30-12.2016)
(Artigo modificado publicado no Cidade de Tomar em 13-3-1998)

            Quando nos perguntamos sobre os motivos da fraquíssima cultura geral manifestada pela grande maioria da população que frequentou o nosso Ensino Secundário, surgem sempre várias respostas que, no seu conjunto, decerto explicarão esse facto indesmentível. Para começar, existe um deficiente ensino da Língua Portuguesa e essa lacuna reflecte-se nos hábitos de leitura que, por sua vez, colocam o comum dos cidadãos à mercê dos meios de informação mais imediatos, como a televisão, a rádio e a Internet que, com muitas honrosas excepções, estão muitas vezes apostados apenas na conquista de audiências pouco exigentes e, assim, se limitam a difundir informação cultural o mais superficial possível e até errónea sobre os mais diversos temas. Essa superficialização da cultura afecta gravemente as possibilidades dos indivíduos para a compreensão efectiva do mundo que os rodeia. Essa deficiência leva-os a conhecer, por vezes, os nomes de muitos dos grandes vultos da humanidade, mas sem os relacionar minimamente com as suas obras. No fundo, simples trivialidades.
            Outro importante sector da referida cultura geral é, sem dúvida, o artístico. Muita gente conhece a “Gioconda” ou a “Última Ceia” de Leonardo, mas do mesmo modo que conhece a Torre de Belém e o Manuelino, ou o Convento de Cristo e Gualdim Pais, ou a “5ª Sinfonia” de Beethoven… Associa-se também alguns artistas às altíssimas cotações atingidas pelas suas obras no mercado internacional … Van Gogh, Picasso, Rembrandt, são mais “conhecidos” pelos milhões que “valem” os seus quadros do que pelo que pela sua arte! São associações automáticas, não correspondendo, na maioria dos casos, a um verdadeiro conhecimento das coisas, das causas ou dos efeitos. Trata-se apenas de dinheiro.
            O mesmo se passa noutras áreas cujo conhecimento público se situa ao nível mais elementar como acontece com as diversas Ciências, com a Literatura e a Filosofia.
             Sem querer de modo algum depreciar estas últimas, seja-me permitido debruçar-me muito brevemente sobre o papel fundamental da Arte na formação global de cada indivíduo, especialmente importante no que toca aos jovens, mais ainda por constituírem o grupo mais permeável às mais negativas solicitações do meio.
            Acontece que a atitude estética é tão antiga como a humanidade e os vestígios dessa actividade cobrem todo o planeta. A produção artística e a sua fruição, valores  sem preço, são vitais para o equilíbrio das sociedades, passadas ou actuais: as suas representações atravessaram os séculos e os milénios, continuando a sensibilizar esteticamente as gerações do nosso tempo, mesmo na ignorância total ou quase dos códigos utilizados, e dos contextos em que foram geradas. Não sabemos quais as reais intenções dos artistas que gravaram as figuras de animais nas rochas de Foz Côa (fig.1), mas essas belas  imagens tocam a nossa sensibilidade muitos milénios depois da sua produção. O mesmo poderemos dizer de outras obras de arte de todas as épocas, desde a já citada “Última Ceia”(fig.2) às pinturas de Van Gogh (fig.3).
            Se pensarmos que o património artístico é parte fundamental da memória colectiva de um povo e essencial para a afirmação da sua identidade cultural, não teremos quaisquer dúvidas  sobre o seu valor na formação individual, muito especialmente numa época como a nossa, em que mais e mais se esbatem as fronteiras políticas.
            Mas tão importante como a identificação dos estilos, das obras e dos artistas, é o conceito de Beleza, tão procurado por filósofos e artistas, a própria Máscara da realidade que a Arte acaba sempre por assumir, por muito “realista” que queira parecer… Sem sensibilidade para as formas artísticas, para o seu conteúdo ou códigos, é impossível qualquer aproximação ao fenómeno estético. Um indivíduo que lhe seja insensível bem poderá “brilhar” em sociedade com o papaguear de nomes, pinturas, esculturas, museus, sinfonias… Poderá ganhar concursos “culturais” na televisão, na rádio ou na Internet… No fundo, não passará de um ignorante pomposo… e quantos não haverá por aí?…

            Como acontece com tudo o que diz respeito à Cultura, é ao Ensino que cabe a principal responsabilidade numa alteração radical deste estado de coisas. No fundo trata-se, “simplesmente”, de pôr as pessoas a pensar!




sexta-feira, 30 de dezembro de 2016


CORFU, A ILHA DOS FEACES
Publicado n’O Templário de 29 de Dezembro de 2016

            Situada no norte do Mar Jónio, Corfu – ou Kerkira – foi a ilha grega  mais disputada entre as diversas potências que sucessivamente a ocuparam, sendo dominantes a influência veneziana, francesa e inglesa expressas ainda hoje, respectivamente, nos numerosos relevos representando o Leão de S. Marcos, em alguma arquitectura urbana e na estatuária.
Corfu é uma cidade bonita, mas o que me deslumbra é a baía que se abre em frente, espectacular e azul como nunca vi, e azuis também as montanhas e montanhas que nascem do mar, na outra margem, já na Albânia, esbatidas em tons cada vez mais ténues, até que a névoa esbate as mais distantes. É essa a impressão que me ficou da Grécia, de encantos velados pela bruma da distância, o relevo agreste duma terra escura, pontuada por casas brancas e por oliveiras, oliveiras, oliveiras… Do céu vi-lhe a ossatura vigorosa, espraiada até aos confins do horizonte, coluna vertebral das criaturas destruídas nos últimos assaltos dos deuses olímpicos ao domínio dos Céus. Como Zeus a veria, do alto das nuvens, pronto a desferir os seus raios tonitruantes. O resto são baías, estreitos, cabos, enseadas, recortes e recortes, ilhas e o mar que tudo penetra: dorsos de monstros marinhos emergindo das águas, com as suas cristas e rugosidades, rochas e alguns vales verdes, canais e lagoas marinhas, com ilhotas no meio, ligadas por línguas de areia que tudo transformam num labirinto líquido, aqui, onde nasceu o Labirinto e a chave para o percorrer, as Asas de Dédalo, e tudo o que nos povoa a imaginação e a vida…

                Estou, literalmente, no ar, em plena Odisseia… Sobrevoo Corfu, a Ilha dos Feaces, a Ítaca de Ulisses e, agora, a Grécia continental, a pensar no génio grego que domou a terra áspera e nos ensinou a Pensar.


Corfu - Fortificações


Corfu - Rua e igreja de S. Spiridon


Corfu - Frutaria

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016


A ODISSEIA: ONDE NASCEM OS CONTOS
Publicado n’O Templário de 22 de Dezembro de 2016

Frederico Lourenço, um dos mais completos homens de Cultura deste País, para além das dezenas de magníficas obras de ensaio e ficção de sua autoria, é tradutor emérito do Grego Antigo, competência essa que lhe permitiu produzir as traduções mais fidedignas e apaixonantes de obras-charneira da Cultura universal como A Ilíada e a A Odisseia de Homero (edição de Livros Cotovia), tendo agora editado o 1º volume da Bíblia (da Quetzal Editores) traduzida directamente do Grego helenístico e se acredita como a versão menos contaminada pela Teologia católica que, de muitas formas manipulou os conteúdos, conclusões e interpretações do Livro sagrado de Judeus e Cristãos.
Mas não é da Bíblia que agora me ocuparei, mas da sua maravilhosa tradução da Odisseia, para mim uma das obras máximas da Literatura, escrita cerca de 700 a.C. por um ou vários poetas que conhecemos sob o nome – pseudónimo – de Homero.
Narra esta obra as aventuras de Ulisses, rei de Ítaca e um dos líderes dos Gregos no cerco e destruição de Tróia. É ele o inventor do “Cavalo de Tróia”, a artimanha usada para conquistar a cidade condenada pelos deuses olímpicos à ocupação e destruição. Essa parte da narrativa, A Ilíada, descreve os dez anos de lutas em redor de Tróia e a morte do seu principal defensor, o príncipe Heitor às mãos do herói Aquiles.
Os dez anos subsequentes à destruição da cidade são ocupados pelas aventuras de Ulisses em demanda da sua pátria longínqua, onde a cobiça do seu trono por pretendentes locais, impõe à sua mulher, Penélope, o arquétipo da fidelidade conjugal, e a seu filho Telémaco, seu digno descendente, a resistência habilidosa com que foram adiando o reconhecimento de um facto julgado já adquirido, o da morte do herói.
As aventuras de Ulisses, cujo apoio da mais importante deusa de toda a Hélade, Atena, garantirá a sobrevivência sobre as ondas de um mar hostil dominado pelo seu poderoso soberano, o deus Poseidon, são o conjunto de narrativas com final feliz que de alguma forma são a génese – hoje dir-se-ia a “incubadora” – de toda a ficção ocidental.
Desde a ilha de Circe ao episódio de Polifemo, o gigante filho de Poseideon, às Sereias e aos monstros marinhos de Cila e Caríbdis, aos encantos da ninfa Calipso e à descida de Ulisses ao Hades – os Infernos da mitologia grega - à chegada à ilha dos Feaces, a actual Corfu e, finalmente, ao reconhecimento de Ulisses pelos seus entes queridos e a sua subsequente e sangrenta vingança contra os pretendentes, aqui encontramos toda a matéria que alimentou o imaginário popular e erudito de tantas gerações até este momento.
Essa herança está nas origens de contos populares de todas as culturas e de obras básicas da Literatura universal, de Virgílio a Camões, de Dante a Shakespeare, de Cervantes a Joyce.
Conhecer A Odisseia é um acto básico de Cultura. E não há razões para continuar a ser ignorada do grande público, tanto na sua forma total como em versões adaptadas para jovens. Par mim, a tradução de Frederico Lourenço e a sua adaptação com o mesmo nome, são a melhor resposta a essa necessidade.

É o “Cavalo de Tróia” para o regresso desta obra à formação individual e colectiva das novas gerações, tão ignorantes deste autêntico tesouro criado há mais de dois mil e setecentos anos.

 



quarta-feira, 21 de dezembro de 2016


HISTÓRIA E VERDADE

Em 26 de Fevereiro de 1988 publiquei, no jornal Cidade de Tomar, um artigo que então me pareceu muito pertinente, intitulado “A Utilidade da História”. Essa pertinência devia-se a sintomas, já então muito evidentes, da decadência do interesse pelo pensamento humanístico e da invasão triunfante do espírito tecnocrático, inimigo feroz de tudo quanto não tenha uma utilidade evidente expressa em números. As Humanidades pareciam um dos alvos a abater para esses seres especiais que apenas aceitam uma Cultura convertível em cifrões e em sinais de poder.
Quase trinta anos depois, as coisas não se modificaram para melhor. Para o Poder, para as instituições, para os media, tudo se reduz a números, a estatísticas... Mas o mal não é só português: está em toda a parte neste abençoado mundo que globalizou a miséria, como já tinha globalizado a violência. É que a pretensa falta de prestígio das Humanidades e das Ciências Humanas não permite aos Senhores do Mundo arrepiar caminho face aos indicadores de alarme que elas lhes poderiam proporcionar. Da Sociologia à Demografia, da Antropologia à Geografia Humana, da Psicologia à História, os seus especialistas, se fossem ouvidos, poderiam inflectir as tendências suicidárias que dominam os governos, em todos os continentes.
Um parêntesis: Apenas a Economia, de entre as diversas Ciências Sociais, mantém ainda o favor de tais senhores. Por enquanto, pois hoje está muito prejudicada, na sua infalibilidade, pela crise geral do sistema que os "papas" de economia liberal recomendaram durante décadas. Não esqueçamos, no entanto, que há tantas "Economias" quantos os sistemas económicos existentes, cada uma correspondendo a diferentes teorias e, portanto, prescrevendo soluções diferentes. Como há também diferentes interpretações na Psicologia, na Antropologia, na História... muitas vezes usadas como armas políticas.
A arma que a História consagrou como antídoto contra a estupidez que conduz à autodestruição da Humanidade, foi o convívio pacífico e enriquecedor de todas as Ciências, Exactas e Humanas. Era esse o ideal do Renascimento que, se não correspondeu a uma época de paz, foi a incubação de um sonho que conduziria a mais Justiça e a mais Saber, depois de nova travessia dos infernos das várias inquisições e tiranias que marcaram os séculos XVI a XVIII... para ressurgirem, triunfantes, nos civilizadíssimos séculos XX e XXI...
Desse convívio nasceram novas ciências, como a Ecologia, a ciência maldita para os tecnocratas, pois lhes limita os rasgos economicistas, lhes trava a iniciativa e tem uma desagradável tendência para alertar o mundo para os perigos da sua perniciosa actividade e para o choque fatal entre lucro descontrolado e qualidade de vida... E também nasceu a Economia, aos altos e baixos entre o Liberalismo ― palavra perigosa porque muda de sentido na travessia do Atlântico ―, e o Marxismo, palavra ainda mais perigosa, porque inventou o Socialismo, outro espécime ameaçado neste bendito mundo...
Vinha falar de História e ainda mal a mencionei, mas não falei de outra coisa o tempo todo! Por isso, para mim, perguntar para que serve a História é uma frontal provocação. Houvesse um melhor conhecimento desta ciência, hoje tão desprezada pela classe do Poder, e teríamos governantes que arrepiariam caminho antes de caírem pela enésima vez nas armadilhas que a Memória poderia denunciar. Porque de Memória estamos a falar.
O historiador é o mais disponível, e também o mais aberto dos investigadores. O mais disponível, porque nada do que é humano lhe é estranho, um pouco “como o monstro da lenda”, no dizer de Marc Bloch, que “onde fareja carne humana, encontra a sua caça”... O mais aberto, porque o mais universalista, o mais permeável à permuta de ideias com os especialistas de outras áreas e o mais despido de preconceitos porque, se não o for, será talvez um cronista ou um ideólogo, mas historiador é que não!
Das Ciências Humanas, é a História a que mais directamente se identifica com a ideia de Cultura, seja ela local, nacional ou universal. É a História que estuda a Cultura no tempo, a sociedade no tempo, a Arte no tempo, a Ciência no tempo, a Técnica no tempo...
Mas afinal sempre faço a pergunta: para que serve a História? Todos quantos enfrentámos ou enfrentamos os rostos perplexos, suspeitosos até, dos jovens em primeiro contacto com as “brumas da memória”, aprendemos o quão difícil é transmitir, explicar a utilidade desse saber tão problemático... Não se teoriza sobre o que se ama e não poucos de entre nós titubearam, hesitaram sobre a “utilidade” daquilo de que nunca procurámos a utilidade. Também não se procura a utilidade do amor, da beleza, do prazer, mas quase todos os procuram...
Como reconhece Joseph Hours, “o conhecimento do passado não pode ser utilizado numa acção profissional, da mesma forma que numa noção de física ou de matemática é utilizada por esta ou por aquela técnica”. Nunca nos perguntamos para que serve conhecermos os nomes dos pais, dos avós, ou a sua origem, sobre a utilidade de conhecer as cores e nomeá-las, contar os objectos e conhecer-lhes as formas, procurar a beleza...
O conhecimento histórico não é tão imediato, mas é fundamental até nas sociedades ditas "primitivas", em que os limites do mundo se encontram nos cumes dos montes mais próximos, na orla ondulante da floresta de carvalhos, na linha dos choupos ribeirinhos, nas margens do grande Mar Oceano... Para esses povos não há história, porque não existe um tempo profano: é o ciclo sagrado do eterno retorno, da “repetição até ao infinito dos gestos exemplares” de heróis e deuses, diz Mircea Eliade, que apenas assinala a sucessão dos dias. “Dos trabalhos e dos dias”, diria Hesíodo. Povos para quem é estranha a ideia de evolução, e os próprios conhecimentos técnicos provêm do “princípio dos tempos”, dádivas eles próprios de gestos criadores de deuses ou de heróis míticos. Mas mesmo essa narrativa a-histórica é, ainda, história!
Se isso é assim para as sociedades “sem História”, como não será para o mundo globalizado em que hoje vivemos, em que a normalização se impõe como um colete-de-forças que transforma a multidão dos povos em rebanho. Em que vivemos uma história linear, sempre a caminho dum futuro radioso, de vitória em vitória até à destruição final?
Para a humanidade dos nossos dias já não existem conhecimentos “puros” provenientes de uma só cultura, de um só povo ou de uma só etnia: cada nova atitude, cada nova descoberta, assentam numa atitude ou numa descoberta já passadas, num erro ou numa sucessão de erros... Quantas casas de adobe e de tijolo, de pedra solta e de alvenaria foi preciso erguer, e quantas ruíram, antes que fosse colocada a última pedra da abóbada capitular do Mosteiro da Batalha ou o último lanço da Ponte Vasco da Gama? E as embarcações, de todos os tempos e nações, que sulcaram os mares e neles se perderam, antes que Bartolomeu Dias, há mais de quinhentos anos, franqueasse as portas do Índico! Todas as inovações, por muito de novo que tragam, assentam os seus alicerces no velho, trazem em si raízes do passado, mas também já, as sementes do futuro: degrau a degrau buscam uma nova fronteira, o intangível...
O conhecimento da História, mais do que qualquer outro, é indispensável à identificação cultural de um povo, de uma nação. Na verdade, a História é a Ciência Humana por excelência, a referência insubstituível, a memória da espécie, a compreensão do mundo que foi, é e será.
Entrados num novo século, nem por isso especialmente “novo”, continuamos a fazer o balanço dos últimos cem anos, dominados pela guerra e pela ideologia. Os acontecimentos da década de 80 nos países do leste europeu, ao mesmo tempo que contribuíam poderosamente para uma nova ordem mundial, pareciam ― pareciam! ― prenunciar o estabelecimento de uma paz duradoura, mesmo nos pontos nevrálgicos do globo. Foi então anunciada, pelos analistas, a morte pura e simples da ideologia…
O tempo foi passando, e os factos desmentiram todas as expectativas. A nova ordem mundial continua crivada de contradições geradoras de conflitos, adiadas apenas até à derrocada do Bloco de Leste pela estratégia internacional das grandes potências. Assim se explica o ressurgir das nacionalidades sufocadas pelos velhos tratados que, desde o início da Idade Moderna puseram fim às sucessivas guerras europeias: tratados de grandes potências, feitos a régua e esquadro nas mesas de negociações; fronteiras artificiais, divagando ao sabor dos avanços e recuos dos exércitos, ou dos imprevisíveis humores deste ou daquele príncipe… Opõem-se, assim, os países nascidos das novas partilhas da Europa e as velhas nacionalidades medievais. O mesmo aconteceu em boa parte da África e no Médio Oriente, antes dominados pela colonização europeia: a sua partilha pelas diversas potências conduziu, após a onda de independências, a conflitos regionais intermináveis e passíveis de alastrar a áreas cada vez maiores. E o aparecimento do terrorismo como um facto incontornável e incontrolável, tornou-se a ameaça e o álibi para todos os atropelos à própria Democracia. A intervenção das grandes potências e os novos tratados de partilha, criaram um círculo infernal, em que cada guerra dá origem a novas guerras… Até a nossa Europa, ainda a ajustar contas com o seu passado desvairado, revela as fragilidades do entendimento internacional e a cada passo em frente correspondem sempre vários passos atrás.
Por isso parece perfeitamente prematuro o dobre de finados pela Ideologia, exactamente o oposto da Ciência ― embora dela se sirva descaradamente! ― , tentativa de resposta às nossas angústias, aos males que afligem a humanidade… E é bem vasto o domínio da ideologia: da religião às várias atitudes perante a nação, o estado, a sociedade, o indivíduo, a arte, a natureza… Este início de século, mais fértil em expectativas por ser também o início de um novo milénio, ampliava a esperança na resolução dos problemas humanos. Contudo, a paz, a justiça social, o bem-estar humano e o equilíbrio ecológico parecem cada vez mais distantes, enquanto ressurgem ou sobrevivem teimosamente os fantasmas dum passado ainda recente, que pensávamos morto e enterrado: o racismo e a xenofobia, o nacionalismo, o machismo, as formas de exploração mais descarada, o fanatismo religioso, a pena de morte…
A defesa de cada um e de todos depende da aplicação de sistemas de pensamento, que se opõem a outros sistemas de pensamento… De ideologias que se opõem a outras ideologias! Elas existem e precisamos desesperadamente delas, ao menos como factor de esperança. O seu desaparecimento depende, “apenas”, da resolução das preocupações que lhes deram origem… Como poderá afirmar-se, então que “a ideologia morreu”?!
Diferente será, no entanto, o seu peso das Ciências. Já vai longe o tempo em que a Igreja Católica, através do seu braço armado, a Inquisição, podia impor o silêncio a um Galileu Galilei, para que os seus estudos astronómicos não pusessem em causa as “verdades eternas” das Sagradas Escrituras e do senso comum… Ou em que era ridicularizado um Darwin, porque as suas descobertas desmentiam o mais velho quadro da Bíblia, a Criação de Adão e Eva! E, no entanto, aí vemos, de novo triunfante no país do progresso e do racionalismo, uma versão moderna do Fixismo: o Criacionismo norte-americano e a ideia espantosa do Desenho Inteligente, a intromissão descarada da Ideologia num conhecimento universalmente reconhecido pela Paleontologia, pela Arqueologia e pela própria Biologia!
Foi a História, decerto, a mais atingida por esta contaminação, porque beneficiária dos discutíveis favores da ideologia… Poucos historiadores escaparam à sua influência, desde Hérodoto, “o pai da História”, aos cronistas medievais e modernos ― sem excepção sequer do nosso tão isento Fernão Lopes ― e a muitos dos contemporâneos, enredados na teia dos interesses da sociedade a que pertencem. Opções políticas, económicas, religiosas, morais, filosóficas e nacionais sobrepõem-se frequentemente à verdade histórica.
Complexos ideológicos como a pretensa superioridade do homem branco ― ou do ariano… ― a infalibilidade do Papa, a legitimidade da Monarquia Absoluta, a justificação da Guerra ou da Conquista, a necessidade do “espaço vital”, a “missão histórica”, as “fronteiras naturais”, a própria Democracia, a Revolução, tiveram também historiadores entre os seus apóstolos. A sua verdade terminava sempre onde começava a dos seus adversários… Em nome de um patriotismo mal entendido, ou de um pragmatismo que remetia a História para a esfera da Moral e, até, da Epopeia, pretendia-se educar os jovens nos altos exemplos dos seus antepassados, omitindo quaisquer factos menos edificantes… Assim agia Tito Lívio, historiador romano, tentando restaurar entre os seus patrícios os “antigos costumes” ― mos maiorum ―, e assim fez o nosso João de Barros, ao “justificar” os direitos invocados pela coroa portuguesa para o domínio do comércio, das rotas e das terras do Oriente…
Em todos os países e sob os regimes políticos e sociais mais diversos, assim justificou a História a sua “utilidade”. Mas no século passado era já reconhecido o seu carácter científico, garantido por grandes nomes da investigação histórica. Isso não impediu o seu aproveitamento político por regimes autoritários ou intolerantes, que assim encontraram “argumentos” suplementares para a sua estratégia de poder.
Assim aconteceu na Alemanha de Hitler, na União Soviética de Estaline, na maioria dos países islâmicos e, com algumas variante, em países “democráticos” como os Estados Unidos de McCarthy e, também, nos de Bush ou, pensando no futuro, de Trump... É que cada um destes exemplos frutificou junto de amigos e aliados. As causas eram diferentes, as formas de repressão variadas, mas igual o prejuízo para a Ciência Histórica, como já o tinha sido para as liberdades individuais e colectivas!
Assim aconteceu com o “Estado Novo” de Salazar, cujos historiadores se apressaram a enfatizar todos os aspectos da nossa História que convergissem com a política oficial. Das “comemorações” aos programas escolares constantes dos “livros únicos”, aos discursos políticos, a palavra de ordem era realçar o papel civilizacional dos portugueses, a alta missão histórica que lhes era confiada por Deus, as glórias militares e religiosas e a clarividência dos Governos da Nação ― excluindo, “evidentemente”, os da 1ª República Democrática! … ― enquanto a Censura se encarregava de silenciar todas as opiniões discordantes…
Essa concepção distorcida da verdade histórica, não era novidade. O exacerbado nacionalismo oitocentista tinha também dado origem a uma mitificação poética do passado que fez escola até aos nossos dias, depois de ter alimentado fartamente o “stock” ideológico do salazarismo.
Um desses mitos era o da “Escola de Sagres”, pretenso círculo de sábios em astronomia e ciências náuticas, sedeado em Sagres, em torno do Infante D. Henrique e seus cavaleiros… Curiosamente, a ideia da invenção deste autêntico Quartel-General das Descobertas é de um inglês, Henry Major, que o descrevia, em 1868, na biografia romântica do Infante The life of Prince Henry of Portugal. Documento algum a menciona, mas esse “pormenor” não impediu que Oliveira Martins o aproveitasse… Nas páginas idealizadas da sua História de Portugal, mais literárias que históricas, podemos imaginar o Infante a ler atentamente livros científicos… que só viriam a ser escritos após a sua morte! … Seja como for, a autoridade dos "historiadores" oficiais do regime impôs-se, e a “Escola de Sagres” e os seus “Sábios” ganharam o estatuto de facto histórico indiscutível! Ainda hoje e apesar do categórico desmentido de tantos investigadores, de Luciano Pereira da Silva e Duarte Leite a Luís de Albuquerque, livros de divulgação e até manuais de História para o Ensino Básico e Secundário, mencionam a mítica “Escola”, fruto de um delírio romântico, sem dúvida contagioso…
Também a arte nacional foi afectada pelo domínio da ideologia, quando se pensava que o Manuelino era a expressão acabada das Descobertas, sendo toda a sua decoração constituída, exclusivamente, por motivos marítimos. Esta tese, que vinha de trás, encontrou na historiografia oficial do “Estado Novo” o terreno fértil de que carecia, como resposta à sua crescente contestação por diversos investigadores. Nasciam novas interpretações do nosso “estilo nacional”, que convergiam em alguns pontos definidos: a decoração manuelina seria caracterizada por motivos vegetalistas, nomeadamente o “tronco podado” da decoração tardo-gótica alemã e outros, comuns ao Hispano-Flamengo espanhol, estilo contemporâneo dos Reis Católicos; estes motivos só muito raramente estariam associados a elementos marítimos, mas com provável significado religioso. E no entanto, nada disto impede que a maioria dos manuais escolares, bem como os livros de carácter turístico para a promoção de Portugal entre os estrangeiros, continuem a afirmar a decoração manuelina é constituída por elementos marítimos, fazendo tábua rasa de toda a investigação mais recente… Tal é o peso da ideologia! …
Não se pense, no entanto, que apenas os portugueses tenham mitificado a sua História, por motivos políticos ou outros… Também os estrangeiros procuraram, em todas as épocas, dar de si próprios uma imagem favorável, de acordo com as suas próprias aspirações de domínio ou de simples ascendente sobre outros países ou as suas possessões… E, nesse ponto, é a nossa verdadeira História a principal vítima!
Os nossos mitos e os mitos dos outros… No fundo, não servirão uns para justificar os outros? …

domingo, 18 de dezembro de 2016


Um Natal no século XXI
Carlos Rodarte Veloso
Publicado no Cidade de Tomar, 12-12-2008
(Um texto corrigido que, passados 9 anos, não perde a actualidade)

            Na quadra que vivemos, neste século tido como tão esperançoso antes, como decepcionante depois do seu início, o Natal mantém ainda a imagem onírica de um Tempo do Nunca, disfarçando com os cenários diáfanos que todos os anos constrói, uma realidade cada vez mais nua e crua. Cada vez mais feia.
            E isso no aniversário fictício de um Menino que não nasceu decerto em 25 de Dezembro, nem sequer no ano 1 da nossa era, e que morreu e ressuscitou aos 33 anos, para nos salvar. A fé terá aqui a palavra definitiva, porque ninguém se pode sentir salvo apenas por causa de um exemplo de auto-sacrifício levado ao extremo, de uma individualidade cuja vida e acções são testemunhadas apenas por uns tantos Evangelhos, entre canónicos e apócrifos, na maior parte contraditórios entre si.
            E é precisamente nesta imprecisão histórica que reside o encanto poético de um nascimento cercado de profecia e sortilégio, numa terra pobre dominada por estrangeiros. Todas as épocas tiveram a sua pequena Belém, berço de ideias contrárias às do senso comum. Ideias que acabam por ganhar voz, ganhar força, ganhar poder. Porque é sempre de Poder que se trata.
            Não foi o Menino, nem o Homem a que deu lugar, que construiu esse Poder. Foram os que, mansa, melifluamente, se apoderaram do seu legado de bondade e amor, e o converteram em força. Numa grande força que tão bem soube forçar os espíritos e os corpos. Assim pôde construir um mundo à medida dos seus interesses, sempre em nome dele... Em nome Dele, porque nem a inicial minúscula permitiram à sua humildade!
            Passaram dois mil e tantos anos sobre essa noite mágica que construímos no âmago de nós próprios, daqueles que um dia se chamaram cristãos. E mesmo os cada vez mais distantes da fé original, perguntam-se se não estarão bem mais próximos dessa tradição de bondade e amor, do que os canónicos senhores da Verdade, que erguem em público as cruzes que em privado desprezam.

            Por isso, recolho o musgo e a areia com que vou cobrir os caminhos sinuosos do Presépio, como Francisco de Assis e os seus Irmãos, irmãos também dos animais e do vento, do sol e da chuva... E a Noite, a luminosa Noite, contemplará, uma vez mais, esse símbolo de paz, justiça, fraternidade.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016


VALDÉON, O ÚLTIMO LUGAR
Publicado n’O Templário de 15 de Dezembro de 2016

Há um canto da Península Ibérica que é verde todo o ano e os seus prados e arvoredos são protegidos, como por muralhas inexpugnáveis, por altas montanhas, onde restos da neve invernal se mantém pelo Verão fora. As aves de rapina, deslizam num azul docemente velado por névoas quase perpétuas ou, violentamente, por nuvens pesadas de chuva, cujas franjas exibem fantásticos jogos de luz e sombra.
Esse vale, o vale de Valdeón, é "el ultimo lugar", como nos diz, encantada, uma mulher de meia-idade, procurando as impressões dos seus visitantes, como todos pródigos em adjectivos. E não é preciso fazer qualquer esforço para acreditar nas evidências. É mesmo "o último lugar", no mundo caótico e tão perigoso em que vivemos, em que o próprio acto vital de respirar é uma aventura. Aqui é possível encher os pulmões de um ar fresco e leve, e caminhar pelas veredas do vale ou da montanha, em que cada passo, cada vista, é um desvendar de maravilhas.
A fauna, bem preservada, engloba desde a águia-real ao urso pardo, do lobo à camurça e à lontra, para citar apenas os animais mais emblemáticos. A flora é riquíssima, desde as espécies arbóreas nativas, dominadas pelo carvalho, a plantas de pequeno porte, cujas flores mais ainda embelezam estas terras.
Culturalmente, este espaço privilegiado revela fortes ligações às Astúrias, com as suas casas de varandas alpendradas e os famosos espigueiros de secção quadrangular ― os "hórreos" ― diferentes dos de Portugal e da Galiza, mas não menos belos. A língua nativa é defendida em inscrições nas paredes. Curiosamente é o nosso Mirandês a única língua oficial com estreito parentesco com o Leonês. 
É um local tão singular, que foi escolhido pelas tradições locais para ser o porto de abrigo de Europa, a bela princesa raptada por Zeus travestido num touro branco. O pai dos deuses deixou-a em Creta, depois de a fazer conceber o rei Minos, o pai longínquo da civilização helénica. Foi dessa ilha, onde era guardada pelo ciúme do deus, que um príncipe cântabro viajando pelo mundo em busca de esposa, a seduziu e resgatou, levando-a para a segurança do seu reino, cujas montanhas baptizou com o nome da bela esposa: Picos de Europa...
A história é bonita, mas o belo nome por que são conhecidas as montanhas terá antes sido dado pelos marinheiros vindos de longe que, ao avistarem os picos da Cordilheira Cantábrica, sabiam estar a chegar a casa, à Europa. Seja uma ou outra a origem do nome, a verdade é que foi neste espaço protegido pela natureza que cresceram povoados de pastores, gente dura, de espírito independente e indomável, e surgiu o nome de Valdeón. Situado na região de Leão, é vizinho próximo do Principado das Astúrias e da Região Autónoma da Cantábria.
O vale é percorrido pelo rio Cares, e vai estreitando para norte, ao mesmo tempo que a altitude passa de 950 metros, medidos na Posada de Valdeón, para 200 metros, já nas Astúrias, a quilómetros ainda da foz, no Mar Cantábrico, depois de atravessar um desfiladeiro profundo. Este desfiladeiro chama-se a Garganta Divina e é difícil conceber a beleza agreste deste percurso, que termina na aldeia de Caín, emparedada por novas montanhas e onde as águas do Cares repousam, alimentadas agora por cascatas de água fresca, preparando a continuação do longo percurso que conduz ao mar. É esse também o percurso de caminheiros de diversos países, irmanados pelo amor que esta região lhes mereceu.
Este lugar merece bem ser conhecido. Mas, se o visitar, respeite-o!
Carlos Rodarte Veloso

crodarte veloso@gmail.com


Fotografias de Jaime Martins Veloso





Fotografias de Jaime Martins Veloso

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016


SER PROFESSOR


Publicado n’O Templário de 8 de Dezembro de 2016

 

Já fui professor em quase todos os graus do ensino. Agora reformado, conto quase trinta e sete anos no Básico, no então chamado Unificado e no Politécnico. E também em formações várias nas áreas mais diversas. Algumas das experiências que guardo, que não esqueço, deixaram-me amargos de boca... e ensinamentos. Assim as tenha sabido aproveitar. As boas recordações – tantas – são hoje difusas, porque os casos felizes não têm história.
De vez em quando, inesperadamente e nos locais menos prováveis, encontro a cara reconhecida de um nome já esquecido ou ainda na ponta da língua. Agora, no Facebook, a presença virtual dessas caras materializa recordações, sentimentos, e a memória, de novo desperta, ultrapassa a falta física e preenche as lacunas do tempo. Porque os alunos não foram todos iguais, por muito isentos que sejamos na nossa avaliação. E foram tantos.
Uns, operários, muitos no comércio ou nos serviços, alguns – poucos – agora meus colegas, outros na rua, sem ocupação certa, engrossando o cancro nacional que se chama desemprego jovem.
Se fui feliz na minha profissão? Com todos os obstáculos, o cansaço mesmo, os momentos de desânimo são casos menores. A desilusão é mais com os altos poderes que partem e repartem matérias, turmas, obrigações burocráticas, com o mais inacreditável desconhecimento da matéria-prima que pensam modelar. Os que destroem sonhos. Os que esqueceram os seus próprios sonhos. Os que corrompem a própria essência do acto de ensinar, transformando-o num mero exercício de estatística.
Porque ser professor é olhar de frente, sem disfarce, esses outros olhos que interrogam ou, simplesmente, esperam. Desde a primeira aula. É bem mais fácil quando interrogam, pois fazerem-no implica, desde logo, tornarem-se membros desse mistério que se chama aprender. Aprender a pensar.
Mas para os que apenas esperam, quantas barreiras há no caminho dos olhos antes que um clarão os ilumine. De parte a parte. E quantas vezes, sem que o calor do entendimento se acenda.
Por isso, ser professor é uma lenta iniciação no caminho do outro. Num caminho que só pode fazer-se caminhando. A par, porque também o orientador é orientado. E como são sábias as palavras: orientar, ou seja, a caminho do oriente, do nascente. Que é como quem diz, das origens. Numa relação que é feita de partilha, de cumplicidade e, tantas vezes, de amizade. Onde tudo começa, rumo ao futuro. Para que haja um futuro.

 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016


HUMBOLDT, PRECURSOR DO AMBIENTALISMO


Publicado n’O Templário de 1 de Dezembro de 2016

 

 

No tempo de Napoleão Bonaparte, Humbolt foi o segundo homem mais famoso do mundo, recebido em triunfo em nações tão díspares como os Estados Unidos da América, a França, Espanha e algumas das suas colónias americanas, a Rússia, a Grã-Bretanha e, evidentemente, a sua Prússia natal. No entanto, é hoje um quase desconhecido.

A publicação em 2015 da sua biografia e das relações que estabeleceu com outros vultos da época, bem como de quanto a sua obra influenciou cientistas e intelectuais que lhe foram posteriores, é um importante passo para a recuperação do seu lugar na história das Ciências e também da Europa e da América onde desempenhou um papel ímpar no estudo da Natureza e na defesa do Ambiente.

 Trata-se da obra, “A Invenção da Natureza. As aventuras de Alexander von Humboldt, o herói esquecido da ciência” da investigadora Andrea Wulf, já publicada em Português (Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2016), obra essa apaixonante e apaixonada, que revela as múltiplos aptidões deste cientista que é claramente um precursor da Ecologia e da defesa do Ambiente.

O nosso herói, barão prussiano nascido e falecido em Berlim entre 1769 e 1859, foi um fabuloso “globetrotter”, não apenas pelas suas diversas viagens pelo mundo, mas no sentido mais global de “cidadão do mundo”, pela influência que exerceu na própria vida política, científica e dos países que visitou.

O carácter universalista da sua cultura abrange os mais diversos ramos do Saber, como a Física e a Química, a Mineralogia e a Geologia, a Vulcanologia, as Línguas Estrangeiras, a Anatomia e a Astronomia e conhecimento profundo dos instrumentos científicos, depois da fase da sua formação académica nas áreas das Finanças e da Economia, que odiava.

Homem de uma tenacidade inquebrantável, infatigável nas suas viagens, simpatizante e apoiante de Darwin e do Darwinismo e dos seus seguidores,  amigo de Simão Bolivar que influenciou fortemente para a libertação da América hispânica do jugo de Espanha, deixou no país natal amigos tão fiéis como Goethe, Schiller, Gauss e os irmãos Grimm e foi mecenas de outros poetas e escritores como Heinrich Heine, Ludwig Tieck e Klaus Groth. O seu irmão, Willelm vom Humboldt, hoje mais famoso que ele próprio, linguista e ministro, foi-lhe sempre muito próximo e uniu-os uma amizade inquebrantável, mesmo quando milhares de quilómetros os separavam.

O seu interesse pela Geologia, levou a uma profissão, quase imposta pela sua despótica mãe, a de assessor das Minas em Berlim, que lhe deu a possibilidade de criar uma escola de formação para mineradores, paga do seu bolso.

A morte de sua mãe em 1796 libertou-o das amarras que o impediam de sair da Alemanha, ele que desde jovem sonhava com as viagens, especialmente depois de uma estadia em Londres onde a visão dos milhares de navios que enchiam o Tamisa – cerca de 15.000 por dia – e de homens como William Bligh – comandante da “Bounty” de triste memória –  e Joseph Banks, botânico do capitão Cook na sua primeira viagem à volta do mundo, lhe aguçaram ainda mais o interesse pelas viagens.

De facto e servindo-se da sua grande fortuna, o seu interesse pelas viagens e e as ciências, levou-o a efectuar percursos históricos que, além das milhares de milhas que percorreu, incluem outros milhares de jornadas terrestres, muitas vezes a pé ou em mulas, para visitar uma das suas grandes paixões, algumas das mais famosas montanhas e todos os vulcões existentes nas rotas palmilhadas.

O seu extrordinário espírito metódico e matemático permitiu-lhe relacionar os seus achados em diversos países e continentes, elaborando teorias que se revelaram muito consistentes, ao ponto de prever e descobrir riquezas mineralógicas em estratos geológicos da Sibéria em consonância com o que observara e registara na América do Sul.

Intuiu também, genialmente, a ideia da “Deriva dos Continentes”, pondo a “mexer” as massas continentais ao longo das falhas sísmicas hoje bem conhecidas, causadoras de terramotos e da formação de montanhas, quando as teorias até então dominantes apontavam apenas para a acção da acumulação milenar de sedimentos.

Mas a sua contribuição mais consistente e que mais reflexos tem nos dias de hoje, é a percepção aguda dos malefícios que o colonialismo europeu, ao “domesticar” as suas possessões na América do Sul  ao sabor de interesses económicos que apostavam na exploração agrícola de grandes latifúndios de monocultura – algodão e açúcar por exemplo – em detrimento das culturas indígenas e das florestas tropicais, que começou a destruir, alterou radicalmente a paisagem física e humana, empobrecendo os respectivos povos.

Um dos efeitos perversos das investigações de Humboldt durante a sua estadia na América do Sul, ele que divulgou generosamente todas as suas descobertas, foi ter involuntariamente proporcionado a Jefferson, presidente dos EUA, as informações que este país depois utilizou na guerra contra o México, para ampliar consideravelmente o território estado-unidense.

A sua admiração em relação a Jefferson era apenas ensombrada pela existência de escravos nas suas propriedades, prática que este apoiava abertamente e Humboldt naturalmente repudiava.

Do mesmo modo, na Europa, a destruição da Natureza era um dado mais do que adquirido: desaparecidas algumas das suas maiores florestas, secas importantes regiões pantanosas a favor de uma agricultura intensiva destinada a alimentar uma demografia galopante, ele denunciou um evidente empobrecimento dos recursos naturais e o crescimento da poluição urbana, antecipando-se em mais de um século às conclusões preocupantes da segunda metade do século XX e aterradoras deste início do terceiro milénio.

Seria fastidioso alongar-me na relação das extrordinárias descobertas deste herói do século XIX, cujo nome foi atribuído a uma dúzia de espécies zoológicas e botânicas até então desconhecidos na Europa e que ele descreveu nas suas explorações, e também de rios, cadeias de montanhas e, até, ao “mar” lunar baptizado “Mare Humboldtianum” e ao asteróide 54, agora denominado “Alexandra”.

A sua obra mais influente foi, “Cosmo: Um Esboço da Descrição Física do Universo”, depois de tantas outras, capitais para o conhecimento do planeta Terra.

Entre cientistas e filósofos que foram seus contemporâneos, destaca-se, entre muitos outros que influenciou, Charles Darwin, outro genial cientista que com “A Origem das Éspécies” revolucionou o entendimento da Natureza e da Humanidade com o Evolucionismo. Outros se lhe seguiram, e apenas indico os referidos por Andrea Wulf: Henry Thoreau, George Perkins Marsh, Ernst Haeckel, inventor do termo Oecologie que derivou para Ecologia e John Muir.

Por todos os motivos apontados e por se tratar duma das personalidades históricas mais originais e fascinantes dos sáculo XIX, com um pé no Romantismo e outro no espírito científico mais rigoroso, é quase obrigatória a leitura desta excelente biografia cujas 544 páginas se lêem de um fôlego.

Carlos Rodarte Veloso

crodarte veloso@gmail.com