sábado, 31 de dezembro de 2016


OPINIÃO// Carlos Rodarte Veloso
Santa Maria de Cárquere e Afonso Henriques menino
No concelho de Resende, cerca de seis quilómetros a sul da vila e do rio Douro, desenrola-se uma paisagem deslumbrante de montes e verde nos contrafortes da serra de Montemuro, parte do antigo domínio do aio de D. Afonso Henriques, Egas Moniz, aquele que levou a família ao rei de Castela, com a corda ao pescoço, para expiar a quebra de juramento do seu rei.
Menos conhecida é a lenda que o liga directamente a estas terras e à construção do mosteiro de Santa Maria de Cárquere. Com algumas variantes, é contada mais ou menos assim: Afonso Henriques nasceu com as pernas de tal modo tolhidas, que não havia qualquer esperança de algum dia poder andar. Egas Moniz, companheiro de armas de seu pai, o conde D. Henrique, educou-o e cuidou dele, como se de um filho se tratasse. Tinha ele cinco anos, foi Egas Moniz surpreendido por uma visão da Virgem que o aconselhava a procurar uma imagem sua no local de Cárquere. A imagem foi encontrada numa cripta, sobre a qual existia um altar. De imediato e de acordo com as instruções divinas, nele depositou o corpo enfermo do futuro rei. A cura foi total e imediata, e motivou o voto da construção, nesse local, de mosteiro consagrado à Virgem. A tradição local perpetua esse milagre com versos e orações, e aponta uma minúscula imagem em marfim guardada na igreja, pretensamente visigótica, como a original da lenda. É claro que pelo seu tamanho e valor está bem guardada num cofre e apenas pode ser vista em fotografia. Se é visigótica ou românica, não há modo de ter a certeza, mas como há a possibilidade de ter aqui existido templo ou ermida pré-românica, essa hipótese é minimamente credível.
Não menos venerada é a imagem da Senhora-a-Branca, escultura gótica em pedra de Ançã, característica das oficinas de Coimbra. Esta escultura está muito deteriorada pois a sua base é raspada pelas mães da região, que acreditam que ao beber com água o pó assim obtido, garantirão um bom aleitamento… Esta crença, cuja idade se desconhece — anos? séculos? — e continua nos nossos dias, obrigou a preencher com gesso as falhas na superfície da imagem.
Do primitivo mosteiro nada resta, além de algumas construções a que chamam “o conventinho” e da capela funerária contendo quatro grandes túmulos dos condes de Resende, descendentes de Egas Moniz, cuja tosca janela românica atesta a antiguidade. Os edifícios sobreviventes, mesmo alterados por construções posteriores, são belos e integram-se harmoniosamente na paisagem envolvente. Um grande arco, uma sólida torre ameada, o conventinho e a igreja, belíssima na sua simplicidade mas de pórtico já manuelino e ornada no interior com bons altares barrocos em talha, constituem monumento digno dos pergaminhos históricos e lendários que ostenta.
Eça de Queiroz conheceu-o decerto, pois sua mulher, D. Emília de Castro Pamplona, era descendente dos condes de Resende e a casa onde viveram, em Santa Cruz do Douro, a Tormes de A Cidade e as Serras, situa-se a poucos quilómetros, na outra margem do Douro. O próprio Eça presta directa homenagem ao velho mosteiro que, em A Ilustre Casa de Ramires , transfigura para Santa Maria de Craquede. Neste romance, no final do capítulo VII, descreve a capela, mas convertendo-a em imponente construção e multiplicando o número de túmulos, cujas características altera também: “E contra o muro, onde rijas nervuras desenham outros arcos, avultam os sete imensos túmulos dos antiquíssimos Ramires, denegridos, lisos, sem um lavor, como toscas arcas de granito, alguns pesadamente encravados no lajedo, outros pousando sobre bolas que os séculos lascaram”.
Junto ao mosteiro, no morro das procissões, onde existiu um castro romanizado, pastam rebanhos de ovelhas e cabras. Contudo, em Maio, velhíssimas cerimónias juntam aqui o povo dos lugares vizinhos para implorar protecção contra as trovoadas. Tudo em redor contribui para fazer sentir ao visitante o peso de séculos e a continuidade no presente de práticas obscuras de que já não há memória. Terras onde o maravilhoso e o real se dissolvem nas brumas da imaginação…

Foto:Igreja Matriz de Cárquere,Resende/Viseu//Créditos de Acscosta, com a devida vénia //Wikipédia

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