domingo, 18 de dezembro de 2016


Um Natal no século XXI
Carlos Rodarte Veloso
Publicado no Cidade de Tomar, 12-12-2008
(Um texto corrigido que, passados 9 anos, não perde a actualidade)

            Na quadra que vivemos, neste século tido como tão esperançoso antes, como decepcionante depois do seu início, o Natal mantém ainda a imagem onírica de um Tempo do Nunca, disfarçando com os cenários diáfanos que todos os anos constrói, uma realidade cada vez mais nua e crua. Cada vez mais feia.
            E isso no aniversário fictício de um Menino que não nasceu decerto em 25 de Dezembro, nem sequer no ano 1 da nossa era, e que morreu e ressuscitou aos 33 anos, para nos salvar. A fé terá aqui a palavra definitiva, porque ninguém se pode sentir salvo apenas por causa de um exemplo de auto-sacrifício levado ao extremo, de uma individualidade cuja vida e acções são testemunhadas apenas por uns tantos Evangelhos, entre canónicos e apócrifos, na maior parte contraditórios entre si.
            E é precisamente nesta imprecisão histórica que reside o encanto poético de um nascimento cercado de profecia e sortilégio, numa terra pobre dominada por estrangeiros. Todas as épocas tiveram a sua pequena Belém, berço de ideias contrárias às do senso comum. Ideias que acabam por ganhar voz, ganhar força, ganhar poder. Porque é sempre de Poder que se trata.
            Não foi o Menino, nem o Homem a que deu lugar, que construiu esse Poder. Foram os que, mansa, melifluamente, se apoderaram do seu legado de bondade e amor, e o converteram em força. Numa grande força que tão bem soube forçar os espíritos e os corpos. Assim pôde construir um mundo à medida dos seus interesses, sempre em nome dele... Em nome Dele, porque nem a inicial minúscula permitiram à sua humildade!
            Passaram dois mil e tantos anos sobre essa noite mágica que construímos no âmago de nós próprios, daqueles que um dia se chamaram cristãos. E mesmo os cada vez mais distantes da fé original, perguntam-se se não estarão bem mais próximos dessa tradição de bondade e amor, do que os canónicos senhores da Verdade, que erguem em público as cruzes que em privado desprezam.

            Por isso, recolho o musgo e a areia com que vou cobrir os caminhos sinuosos do Presépio, como Francisco de Assis e os seus Irmãos, irmãos também dos animais e do vento, do sol e da chuva... E a Noite, a luminosa Noite, contemplará, uma vez mais, esse símbolo de paz, justiça, fraternidade.

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