Um Natal
no século XXI
Carlos Rodarte Veloso
Publicado no Cidade de Tomar, 12-12-2008
(Um texto corrigido que, passados
9 anos, não perde a actualidade)
Na quadra que vivemos, neste século
tido como tão esperançoso antes, como decepcionante depois do seu início, o
Natal mantém ainda a imagem onírica de um Tempo do Nunca, disfarçando com os cenários
diáfanos que todos os anos constrói, uma realidade cada vez mais nua e crua.
Cada vez mais feia.
E isso no aniversário fictício de um
Menino que não nasceu decerto em 25 de Dezembro, nem sequer no ano 1 da nossa
era, e que morreu e ressuscitou aos 33 anos, para nos salvar. A fé terá aqui a
palavra definitiva, porque ninguém se pode sentir salvo apenas por causa de um
exemplo de auto-sacrifício levado ao extremo, de uma individualidade cuja vida
e acções são testemunhadas apenas por uns tantos Evangelhos, entre canónicos e
apócrifos, na maior parte contraditórios entre si.
E é precisamente nesta imprecisão
histórica que reside o encanto poético de um nascimento cercado de profecia e
sortilégio, numa terra pobre dominada por estrangeiros. Todas as épocas tiveram
a sua pequena Belém, berço de ideias contrárias às do senso comum. Ideias que
acabam por ganhar voz, ganhar força, ganhar poder. Porque é sempre de Poder que
se trata.
Não foi o Menino, nem o Homem a que
deu lugar, que construiu esse Poder. Foram os que, mansa, melifluamente, se
apoderaram do seu legado de bondade e amor, e o converteram em força. Numa grande
força que tão bem soube forçar os espíritos e os corpos. Assim pôde construir
um mundo à medida dos seus interesses, sempre em nome dele... Em nome Dele, porque nem a inicial minúscula
permitiram à sua humildade!
Passaram dois mil e tantos anos
sobre essa noite mágica que construímos no âmago de nós próprios, daqueles que
um dia se chamaram cristãos. E mesmo os cada vez mais distantes da fé original,
perguntam-se se não estarão bem mais próximos dessa tradição de bondade e amor,
do que os canónicos senhores da Verdade, que erguem em público as cruzes que em
privado desprezam.
Por isso, recolho o musgo e a areia
com que vou cobrir os caminhos sinuosos do Presépio, como Francisco de Assis e
os seus Irmãos, irmãos também dos animais e do vento, do sol e da chuva... E a
Noite, a luminosa Noite, contemplará, uma vez mais, esse símbolo de paz,
justiça, fraternidade.
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