ESCLAVAGISMO E RACISMO
NO PORTUGAL DAS DESCOBERTAS
Carlos Rodarte Veloso
Publicado n’ "O Templário" de
11-5-2017
Escravos capturados descem ao porão de navio negreiro |
A propósito de algumas leituras apressadas da nossa História da Expansão, que entronizam os Portugueses como precursores do Abolicionismo ou seja, da extinção da escravatura e, até, do racismo, penso que a verdade histórica não pode ser escamoteada, mesmo por motivos diplomáticos
No período colonial e esclavagista, o Negro tinha claramente um estatuto de raça inferior: em termos de “impureza de sangue”, do século XVI ao XVIII, estava equiparado aos Judeus, Mouros, heréticos “ou outra infecta raça reprovada”, o que trazia ao marido branco de “mulher de cor” o impedimento de pertencer às Ordens Militares e, aos seus descendentes, de ascenderem à clerezia… Só os “Cristãos-Velhos” de sangue rigorosamente “limpo” o podiam fazer livremente. Note-se que esta atitude não era modificada mesmo que os Negros fossem baptizados, o que acontecia frequentemente.
Contraditória é a atitude dos Jesuítas, grandes defensores dos direitos dos Índios: embora reconhecendo a necessidade de os Negros serem bem tratados e lhes reconhecessem a racionalidade e outras qualidades “próprias de seres humanos”, argumentavam que a melhor protecção à liberdade dos seus protegidos seria a importação de escravos africanos… Estes, por sua vez, assim salvariam as suas almas ao serem baptizados, a mais hipócrita das razões, já avançada, no século XV pelo cronista do Infante D. Henrique, Gomes Eanes de Zurara, dividido entre a obediência ao seu suserano e a tristeza que dele se apoderou perante os primeiros escravos chegados a Lagos:
“Mas qual seria o coração, por duro que ser pudesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela companha? Que uns tinham as caras baixas e os rostros lavados com lagrimas, olhando uns contra os outros […] Mas para seu dó ser mais acrecentado, sobrevieram aqueles que tinham cargo de partilha e começaram de os apartarem uns dos outros, a fim de poerem seus quinhões em igualeza; onde convinha de necessidade de se apartarem os filhos dos padres, e as mulheres dos maridos e os irmãos dos outros. A amigos nem a parentes não se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde a sorte levava!
Quem poderia acabar aquela partição sem mui grande trabalho? Que tanto que os tinham postos em uma parte, os filhos, que viam os padres na outra, alevantavam-se rijamente e iam-se para eles; as madres apertavam os outros filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, por lhe não serem tirados! […]
O Infante era ali em cima de um poderoso cavalo, acompanhado de suas gentes […] e das almas que lhe cabiam do quinto, fez delas sua partilha […] considerando com grande prazer na salvação daquelas almas, que antes eram perdidas. E certamente que seu pensamento não era vão, que, como ja dissemos, tanto que estes haviam conhecimento da linguagem, com pequeno movimento se tornavam Cristãos.”
Gomes Eanes de Zurara, Crónica do Descobrimento e Conquista de Guiné
Calavam assim os Jesuítas os protestos dos colonos, ávidos de mão-de-obra escrava, sem tocar nos interesses económicos da Companhia nem dos Colonos. Os Padres Andreoni, Benci e outros Jesuítas, como o fizera António Vieira, sempre exigiram um tratamento humano para os escravos, mas sem nunca colocar em causa o estatuto de escravidão.
A segregação social tocava todos os aspectos da vida social. Mesmo a acesso a certos conventos era interdito, se houvesse sequer a suspeita de “nódoa de mulatice”! Curiosamente, era mais fácil a uma “mulata clara” ingressar num convento da Metrópole do que num da Colónia. Mais racista ainda, se isso fosse possível, era o das Carmelitas Descalças Teresianas, em 1680 estabelecidas em Olinda, que apenas aceitavam “mulheres brancas vindas do Reino”, recusando quaisquer brasileiras, mesmo que “brancas puras”!
Como seria de esperar, as reacções dos visados pelo preconceito acabaram inevitavelmente por surgir: pela via pacífica, através da adesão a Confrarias como a Irmandade do Santíssimo Rosário dos Homens Negros, que concedia numerosos privilégios aos seus membros, mesmo que escravos.
Assalto do exército regular ao Quilombo de Palmares |
Um
caso especial dentro da problemática racial, que mereceria talvez um
desenvolvimento à parte, é o das Mulatas, objecto da especial preferência dos
Brancos, mesmo em desfavor das mulheres brancas. Estas, sentindo-se preteridas,
frequentemente utilizavam contra as suas rivais dos meios que a sua
predominância social lhes permitia, sendo a Literatura fértil em referências a
casos desses. A própria legislação era vexatória, equiparando os Mulatos aos
escravos, o que lhes proibia usar armas, roupas caras ou outros quaisquer
sinais que os elevassem ao nível dos Brancos. Se é verdade que esta legislação
era aplicada nas Cidades, nos agregados menores e periféricos era geralmente
quase ignorada, dada a escassez de mulheres brancas.
Mas
o que parece incontroverso é que, pelo menos no período colonial, o estatuto de
negritude, em qualquer grau que fosse, equivalia sempre a uma inferiorização
racial e não apenas social.
No
fundo, o problema básico era a organização patriarcal da sociedade,
especialmente nas zonas agrárias do latifúndio e da monocultura, tendo o chefe
de família direito de vida e de morte sobre todos os membros. Sabemos que em
caso de “deslizes”, reais ou imaginários, de meninas da casa com escravos,
estes eram habitualmente torturados, castrados e enterrados vivos. Quanto às
meninas, eram “passadas” a um “primo pobre”, pronto a aceitar a “desonra” a
troco de um bom dote…
Estamos
então a falar de um conceito paternalista e quase benevolente da escravidão,
como defende Gilberto Freyre no seu “Luso-Tropicalismo” ou, pelo contrário, do
epítome da sua natureza desumana, que nem a aculturação linguística, as
estorinhas das amas negras, a adopção dos costumes e da gastronomia indígenas
ou africanas pelos brancos, alguma vez poderão adoçar?
O Marquês de
Pombal, que em boa hora extinguiu a escravidão na Metrópole, nada fez quanto ao
comércio negreiro intercolonial e ao próprio estatuto da escravatura nas
possessões ultramarinas, excepto no que toca aos Índios do Brasil. Nem o fim da
escravatura e do consequente comércio negreiro termina, “de facto”, antes de
1856 ou seja, com algum atraso em relação a diversos países europeus.
Para que
conste.
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