segunda-feira, 15 de maio de 2017


TOMAR E O CERCO ÁRABE DE 1190 
OU 
COMO SE CONTA A HISTÓRIA
Carlos Rodarte Veloso

(Publicado em "Correio Transmontano", 14-5-2017)
É quase um lugar-comum dizer-se que a História é escrita pelos vencedores e isso está bem patente na comparação de dois texto escritos por cronistas cristãos e muçulmanos acerca do mesmíssimo acontecimento, o cerco de Tomar pelos mouros almóadas em 1190.

O cerco iniciou-se em 13 de Julho, procurando os muçulmanos recuperar as terras de entre o Mondego e o Tejo, pouco tempo antes reconquistadas por D. Afonso Henriques.
Reinava já em Portugal o seu filho, D. Sancho I, e o castelo de Tomar era defendido pelos cavaleiros templários chefiados por Gualdim Pais, que acolhiam dentro das suas muralhas, como era normal em caso de perigo, os habitantes fugidos das suas casas na parte baixa da Vila.

O cerco durou poucos dias, porque à resistência templária se juntou uma muito oportuna crise de disenteria que obrigou os sitiantes a retirarem-se à pressa para as suas terras no Andaluz, a região da Península Ibérica ainda em poder dos muçulmanos. Antes disso, eles tinham conquistado e destruído o castelo de Torres Novas, permitindo que os seus habitantes, que se tinham rendido, se retirassem sãos e salvos com a única perda dos seus bens.
É desta maneira que Duarte Galvão, cronista português que viveu entre 1445 e 1517, descreve esse acontecimento na Crónica de El-Rei D. Afonso Henriques:
“O Almiramolim, Rei dos Mouros […] passou o Tejo um domingo, dia de S. João Baptista de 1190 […] Logo esse dia foram sobre o Castelo de Torres Novas e destruíram-no. Segunda-Feira puseram um arraial em Monte Pompeu [?] e na Terça-Feira [as avançadas] estavam em Redinha.”
Uma lápide existente no Castelo de Tomar refere igualmente o acontecimento na segunda parte da sua epígrafe [Amorim Rosa, História de Tomar, 1988].
“Era de 1228 [da chamada era de César, usada em Portugal até ao reinado de D. João I, equivalente ao ano de 1190 d.C.]: aos trese dias de Julho veio El-Rei de Marrocos trazendo 400 cavaleiros e 500 peões e cercou este Castelo por seis dias: e destruiu quanto achou fora de muros; e ao Castelo [de Tomar] e ao dito Mestre [D. Gualdim Pais] com seus soldados livrou Deus de suas mãos; o mesmo Rei voltou para a sua pátria com inumerável perda de homens e animais”



Fontes islâmicas comentam o mesmo facto histórico, evidentemente reescrevendo também os factos à luz da sua conveniência, ou seja, vincando os aspectos positivos da sua acção, nomeadamente o seu poder avassalador e a sua misericórdia para com os vencidos.
“A coluna almóada ganhou primeiro Córdova. Depositou aí as suas bagagens mais pesadas, fez as suas provisões de víveres e equipou-se de novo. Depois de ter passado alguns dias nesta cidade, dirigiu-se para o vale do Tejo, atravessou o rio e encaminhou-se para a região de cereais próxima de Santarém; ali devastou ou incendiou um castelo forte de nome Torres [Novas], situado sobre um cume elevado. Este castelo foi assaltado e os ocupantes pediram para o evacuar com as suas mulheres e os seus filhos deixando tudo na praça. Foi-lhes dada satisfação e os almóadas penetraram nesse castelo forte onde encontraram muitos cavalos, armas e objectos mobiliários. Depois de o ter devastado, dirigiram-se para a cidade de Tomar (Thumar), cidade bem defendida, de solo fértil, com vinhas, árvores de fruto e ricos terrenos de cultura. Esta cidade sofreu a mesma sorte de Torres [Novas]: foi saqueada e incendiada. Ao mesmo tempo pontas almóadas eram lançadas em todas as direcções e executavam aí audaciosos golpes de mão. Entretanto, na sua capital, o rei Ibn Anrique [D. Sancho I, filho de D. Afonso Henriques] era condenado à inacção e não podia empreender nada para se opor à coluna almóada. Esta, bem abastecida, não teve necessidade de apressar o seu regresso e continuou os seus raides até ao momento em que o soberano decidiu regressar ao território muçulmano. Este movimento fez-se em boa ordem e o exército, carregado de presa, acabou por regressar a Sevilha.” [“A Expedição de 1190 segundo a Chancelaria Almóada”, António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe , Lisboa, 1973].

Como está patente no texto não houve pressas nem doença que afectasse os bravos guerreiros do Islão.
Para ambas as crónicas e documentos, os vencedores foram... os Cristãos e os Muçulmanos!
Este exemplo ilustra perfeitamente as cautelas que o historiador tem que ter ao utilizar as fontes documentais disponíveis e o quanto a escrita pode falsear os acontecimentos. Se isso acontece hoje em dia a todo o momento e cada vez mais! O que não falta hoje são fontes históricas, mas honestidade e imparcialidade, nem por isso... Basta comparar as notícias de diferentes media sobre os mesmos factos: a actual guerra na Síria vista por fontes norte-americanas, russas, sírias, turcas, portuguesas de diferentes tendências políticas, por exemplo Como verá a posteridade estes acontecimentos sangrentos, qual será a “verdade” inscrita nos livros de História do futuro?

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